sexta-feira, 29 de maio de 2009

Tristeza Neurológica (ilógica) de um Psiquiatra

Na sala de espera de uma clínica de uma otorrinolaringologista e um fonoaudiólogo, especializados em deficiências auditivas e distúrbios de equilíbrio, acompanhava duas pessoas e, como elas, aguardava.
Do nada aquele senhor de boa aparência e aparentando ter seus cinquenta e poucos anos começou a falar de si mesmo para todos naquela sala de espera. Uma espécie de choque parece ter tomado conta das pessoas, pois somos todos tão despreparados para lidar com o diferente e o inesperado. Ele falava com todos, como se quisesse prestar um testemunho. Pra ele eram todos estranhos, e não faria a menor diferença se houvesse ali algum conhecido, pois ele não saberia.
Relatou que seu cérebro havia sofrido uma atrofia na área da memória e que agora não se lembrava de mais nada, praticamente, a não ser da mãe e parentes próximos. O problema foi percebido em 20005, ou seja, há aproximadamente 4 anos. Era (é?) psiquiatra, mas não reconhece sequer seus colegas de clínica médica. Irônica a vida! Ele relata, mas ninguém se manifesta; parecem temerosos, como se ele fosse louco.
Presto mais atenção, aceno com a cabeça, ele parece se sentir acolhido (ou será impressão minha?), mas de qualquer forma fui o único a dar retorno, a conversar, a indagar, a tratá-lo como gente, como ser humano, e não como um louco. Quem é louco, afinal?
Ele desaprendeu tudo, até mesmo a ler. O acomete o que, no meio de saúde, se chama de afasia, ou talvez seja esquecimento total. Afasia é não ligar o nome de algo ao objeto: por exemplo, não ligar que cadeira é a palavra que designa o objeto no qual está sentado.
Perguntei a ele sobre a infância, ele demonstrava necessidade de conversar, e ele, ouvindo mal (era por isto que estava ali), solicitou ajuda à mãe, uma simpática senhora que deve estar com seus setenta e alguns anos. Ela lhe repetiu "Infância" e ele retrucou "Infância? O que é isso?". Ele não só não se lembra da sua infância (a mãe lhe explicou, em vão), como tampouco se lembra do que significa o termo infância, criança etc.
Fiquei ali, dando atenção, que era o que ele carecia naquele momento, e ouvindo intrigado. Intrigado com essas tantas interrogações que a vida nos coloca na frente. A vida é cheia de interrogações que tentamos, às vezes, buscar responder com a fé, com Deus ou atacando Deus, tanto faz. A busca é humana, seja com fé ou com o "negativo" da fé. O negativo da foto não é também a foto? Isto pra quem se lembra dos tempos do negativo.
Aquele homem era um psiquiatra casado e, ao que parece, bem sucedido até 2005. Agora é um homem sem profissão, quase sem identidade, com necessidade de falar de si, de seu distúrbio raro, sobre o qual a medicina, que ele próprio praticava, nada sabe dizer e nem resolver. A ciência dele de nada serviu pra salvá-lo, independentemente de quantos ele tenha ajudado. Irônico momento da vida, cheia de ironias.
A ironia humana tem por objetivo ou agredir ou fazer pensar, atiçar a mente. E a ironia da vida? Poderíamos pensar o mesmo dela? Levaria a que?
Fiquei pensando se ele, o ex-psiquiatra, sofre. Talvez não, já que não tem memória. Mas fiquei em dúvida, pois vi nele uma enorme necessidade de se explicar, de falar de si. Isto é normal a todos os seres humanos.
Acompanhei a consulta rápida de uma tia, voltei em menos de 5 minutos à sala de espera, me despedi dele, e ele já nem sabia quem eu era ou que havia conversado comigo.
O que são esses desafios que a vida nos impõe, afinal? Haverá alguma explicação lógica ou algum sentido nisso, ou teremos que aceitar a falta de lógica da vida? Não sei! Penso, uso minha memória e vou adicionando fatos, dados, ficando intrigado, às vezes revoltado, às vezes comovido, às vezes irado. Mas seja como for, minha reação de nada importa. A vida é como é, gritemos o quanto quisermos.

2 comentários:

  1. Ivan...Olha só que legal vc ter dividido seus textos em categoria... entrei hj nos contos para ver se já tinha te consumido tudo...rsrsrs e logo esse aqui tinha passado por mim... ou melhor não passado!Fiquei empolgadíssima pq alguns textos devem ser novinhos para a psicótica aqui...hehehehe....a busca continua...
    Nesse texto vc tocou em um assunto que mexe comigo demais... por ter uma mãe com problemas neurológicos conheci e ainda conheço histórias de vida impressionantes... muitas muito tristes..outras "ironicas"...algumas por incrivel que possa parecer compreensíveis...
    Meu sentimento é sempre o mesmo..inquietação... a algum tempo decidi a duras penas há não mais sentir pena de ninguém...assim qdo me sinto assim 'inquieta" e até injustiçada pela efemeridade da vida tento liberar ternura e brandura...todos no fundo temos nossos traumas e necessitamos de alguma compreensão...mesmo que seja de alguém estranho...Um simples olhar muitas vezes é um mundo...
    Nossa como isso tudo me transtorna... melhor parar.. mil coisas...mil lembranças.. mil lições..e milhoes de perguntas sem respostas...

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  2. Oi, Aline.
    Este fato me marcou muito. Me lembro do rosto dele até hoje e do quão impressionante foi tudo. Mas o mais impressionante pra mim foi a incapacidade da quase totalidade das pessoas alí em lidar com o "diferente". Todos pareciam "acuados", temerosos. O senhor era pacífico, nada agressivo e só precisava expor sua angústia por não ter mais memória. Não tem mais memória a ponto de se esquecer, em 5 minutos, que tinha conversado comigo, da palavra "infância" etc.
    É uma realidade triste, sim, como várias, e incompreensível, mas assim como no caso da sua mãe, vi uma coisa que traz algum alento: pela falta de memória, ele parece não sofrer tanto ou quase não sofrer. Só vi nele a necessidade de se comunicar e falar do que ainda consegue falar.
    Essas coisas da vida, que eu não compreendo (e acho que ninguém compreende, embora desenvolvam suas crenças e teorias), são o que me leva às ironias, às heresias, à descrença em um modelo religioso-filosófico. Tudo isso vem do fato de que toda e qualquer tentativa de "explicação" religiosa ou filosófica não dar uma explicação ou justificativa plausível e inteligente (portanto talvez aceitável) dentro da tríade de um deus dito oniciente, onipresente e onipotente... É isso tudo e deixa acontecer? Por que? Talvez porque o "oni" seja de onívoro, mesmo, como já conversamos em outros posts, tendo como inspiração nosso amigo Homer Simpson.
    Beijo grande.

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