domingo, 1 de dezembro de 2013

Laranja fugídia

Tinha o cabelo meio pintado de laranja, laranja fugídia, seja lá que cor for essa, e se aproximou determinada a manter contato, mal sabendo que se aproximava de destroços de uma longa guerra de mais de quarenta anos e ainda não terminada. Disse olá e recebeu um olá temeroso e desajeitado de volta. Ele na verdade não sabia o que dizer. Sentiu-se encantado e atraído por ela e, como era seu usual, temeroso e amedrontado, quase fugindo dela. Tinha medo de quê? Ele sabia em parte que medos tinha, mas os principais medos por detrás dos medos que conhecia, ele desconhecia. E ela continuou puxando conversa. Ele respondia meio desajeitado, meio com jeito de que, em parte, já aprendeu a disfarçar o quão desmoronado está. “Sei de onde te conheço”, disse ela e mencionou um lugar. Não, não era de lá. Ele tinha ido lá pouquíssimas vezes e se lembraria dela, com certeza. Ele também sabia que estivera a seguindo com os olhos no café e que aquela era uma aproximação não casual, embora ela tenha puxado conversa no vagão do metrô, embora ela tenha se aproximado e ele, como usual, não sabido o que fazer ou dizer. Das poltronas da fileira da frente dele, onde ficara conversando com ele por uns dez minutos apoiada nos joelhos, pulou para a cadeira do lado dele. O vagão estava vazio e isto fazia da conversa algo bastante privativo, o que era bom, mas o assustava bastante. “Quer ir comigo à minha casa para ver o quadro de que te falei? Na verdade é uma gravura do quadro...”, e ele respondeu, sem pensar nas consequências, “Quero, claro”. E foram, mas aí ele já estava extremamente preocupado. E se ela quisesse transar e ele se demonstrasse, como sempre, inseguro e às vezes até impotente, por questões psicológicas do mesmo nível que derrubam uma pessoa que tenta se equilibrar em um muro de três metros de altura, mas que consegue andar por um muro idêntico se estiver a dez centímetros de altura. Era assim, estava sempre no muro a três metros de altura ou mais... Talvez pior, estava a dez metros de altura, cem, duzentos, mil, sei lá. O medo o dominava. Entrou na casa dela já tentando encontrar uma desculpa para ter que ir embora. “Não posso me demorar, tenho um trabalho a terminar hoje”, “Ok”, respondeu ela sem hesitar e foi fazer um chá aromático para eles, se justificando que não costumava ter café em casa e perguntando se ele queria com ou sem açúcar. “Sem açúcar”, respondeu ele e assim ela o acompanhou. Mostrou o quadro do pintor a quem havia se referido no trem, que era um pintor de rua que havia conseguido se projetar sem o menor esforço. Ele, a bem da verdade, não havia gostado muito do quadro, mas gostou um pouco. Era até interessante... ou o interessante era a parte que vinha pelo fato de o quadro ser dela? Bem poderia ser. “Interessante”, disse e pensou. Ela disse que aprendeu a fazer aquele chá no café em que trabalhara. “Ah...”, respondeu ele sem saber o que dizer. Sentia-se atraído por ela e, ao mesmo tempo, sem o menor tesão. Não por ela, sem o menor tesão por nada, sem libido, sem energia nenhuma. Já vinha vivendo assim desde... Quando? Mais fortemente havia quatro anos, sobrecarregado, esmagado, destruído. De forma gera, desde sempre. Nunca teve libido e energia, não de forma positiva. Sua energia vital era gasta com estresse, depressão, medos, medos, medos, ódio, rancores, angústias, pavores inomináveis. Como fazer alguém saber disso? Como fazer alguém gostar disso? E quando alguém gostava dele, era alguém com problemas sérios de autoestima, coisa especular, mas não espetacular. Mulheres que viam nele algo interessante, mas carentes demais, sugadoras demais da pouca energia que lhe sobrava. Ali era uma que ele ainda não sabia. Ela se interessara por ele, é certo, mas nem sonhava que tinha diante de si um amontoado de cacos que até podia se assemelhar a um harmonioso mosaico... ou um quebra-cabeças relativamente bem montado. Mas faltavam peças importantes que normalmente as pessoas nem notavam ou não sabiam da importância que tinham. Era como se fosse um quebra-cabeças panorâmico de Nova Yorque mostrando as torres gêmeas, tirada no exato instante dos ataques de 11 de setembro de 2001 e a peça faltante era a que continha o primeiro dos aviões que fizera desabar a torre norte. Pareceria uma simples foto de uma panorâmica de Nova Yorque tirada antes do ataque. Não era. Havia um desabamento ali na peça faltante. E ela continuava a falar com ele e para ele. Algumas coisas interessantes e de um jeito interessante, mas na maior parte do momento ele voava e flutuava seus pensamentos como se fosse um pássaro bêbado prestes a se esborrachar na primeira janela de vidro com a qual se deparasse sem saber que era uma janela de vidro. Pow!!! Podia ocorrer a qualquer hora. E ela falava lindamente e expunha seu jeito singular com seus cabelos laranja e sua inteligência e espontaneidade. Mostrou-lhe também músicas com gostos extremamente semelhantes, falava dos instrumentos com propriedade, embora leiga. Ele ia ficando cada vez mais encantado, hipnotizado e com medo. O que lhe impingia aquele medo? O que, em suas origens, em sua história de vida poderia justificar tal medo? Não sabia dizer. Conceitos religiosos, conceitos familiares, massacres sofridos? Não sabia, não sabia de nada, a não ser que o medo tomava conta dele de forma incontrolável, e quanto mais interessante lhe fosse uma mulher, maior a tendência de que fugisse. Ela foi, finalmente, preparar outra xícara de chá aromático para ambos enquanto deixou um CD do Branford Marsalis tocando... magnífico, com Kenny Kirkland no piano, Omar Hakin na bateria e Darryl Jones no baixo. A mesma banda que acompanhara Sting em sem álbum ao vivo, um de seus prediletos, Bring On The Night. Viajou ouvindo aquele jazz moderno e empolgante até que ela chegou com o chá aromático novamente. Olhou-a com admiração e pegou a xícara, mas tomou o chá o mais rápido que pôde, com ímpetos de fugir. Não fugiu. Ela disse que tinha que ir ao Centro e o chamou, ele disse que não podia, por causa do compromisso ou trabalho ou sabe lá o que havia dito que tinha que fazer. Despediram-se com um beijo no rosto, mas não trocaram telefone e nem sequer perguntaram seus nomes. Ela tomou um ônibus em uma direção e ele tomou o metrô em outra direção, voltando para sua casa sem vida. O nome dele era não-sei ou pouco-importa, o dela, para ele, ficou sendo Mme. Laranja Fugídia... Linda. Nunca mais a viu, embora tenha tentado encontrá-la no mesmo metrô, nos mesmos horários e até tenha passado na casa dela. Mas ela havia se mudado. Ele só descobriu seu nome, através do porteiro do prédio simples e descolado: Orange. “Nome estranho, né, dotô?”, inquiriu o porteiro de forma amigável e simplória. Tem tudo a ver. Orange fugiu com seu cabelo laranja pra sabe-se lá onde. Ele? Ele seguiu tentando fugir dos seus medos e tomando o mesmo metrô sempre que possível e procurando por um cabelo laranja que poderia estar de qualquer outra cor. Nunca encontrou... nunca encontrou nada.

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