
Os fatos aqui narrados ocorreram em uma fazenda nos arredores da cidade de São Gotardo, interior do estado de Minas Gerais, nos idos dos anos 30 do século passado. Nesta fazenda morava um bravo rapaz, que devia então ter menos de 18 anos, pois foi aos 18 que teve a oportunidade de começar a estudar. Todos os anos, numa época específica, a região era atormentada pela aparição de um fantasma terrível e que não era desses caprichosos que só aparecem para alguns, mas para todos, inclusive aos animais. O fantasma só era visto ao longe, movendo-se em noites de lua, assintosamente visível aos crédulos e aos incrédulos. De nada adiantava as rezas e orações feitos pelos mais penitentes e fervorosos moradores e peões das fazendas da região. Era fantasma famoso e, embora sem nome, já renomado. Cavalos, gatos e cachorros se negavam a passar por onde o fantasma ficava. Havia um lugar predileto do fantasma e, pelo menos por aquelas paragens, era sempre lá que ele ficava. E não adiantava: cavalos relichavam e davam coices, cachorros ladravam, gatos se esquivavam. Dos pássaros não sei dizer se havia boa convivência ou não. No escuro, após o por do sol, os pássaros são discretos e nos fogem à percepção.
Insistentemente lá estava ele, todas as noites a mover-se no mesmo ponto, a provocar e amedrontar a todos. Era assunto nas rodas de conversa, no tecer prosa de pessoas reunidas nos momentos de descanso. Logo de manhã, quando, como de costume, acordavam os peões ao trabalho, lá estava o fantasma. Era preciso que esperassem que se fosse antes de cruzar aquele caminho, para quem lá tinha de passar. Ninguém o enfrentava. Fantasma que aparece pra todo mundo é abusado demais, nem dá pra ser negado ou tido por alucinação, nem mesmo coletiva, uma vez que animais não seguem alucinações coletivas. Estavam lá os cavalos e outros animais também a provar a todos a veracidade dos fantasmas. E ele gostava das noites de lua clara. Se cheia, tanto melhor, se divertia mais às custas dos moradores da roça.
O bravo rapaz a que me referi era intrigado com o fantasma e, como viria a demonstrar sua vida posterior, embora curta, era dado a querer se aprofundar em conhecimentos. Um fantasma com quem não estivera era um fantasma a conhecer. Daí, contrariando as advertências de todos os moradores que horrorizados pediam-lhe que não fizesse aquilo, ele, numa noite, decidiu pegar um cavalo e ir ter com o fantasma. Pegou o cavalo, cuidadosamente lhe pôs sela, estribos, freios e essas coisas de que os peões da roça conhecem e nós, os ditos civilizados, desconhecemos ou sabemos pouco. Era bom cavalo, há de se presumir, e de confiança, pois para tal tarefa não seria escolhido um cavalinho qualquer desses que se assustam até se a égua fosse maior um pouco. Não! Era cavalo bravo, cavalo dos bons. Tudo certo, montou o cavalo e saiu a galope em direção ao fantasma, mas não havia pensado que também o valente cavalo, companheiro do dia de trabalho, fosse dar o vexame de se amedrontar, mas foi assim que sucedeu. O cavalo, vendo o fantasma, empinou, relinchou, tentou voltar, mas o rapaz não desistiu. Metia-lhe as esporas, mas de nada adiantava: o cavalo se negava a ir adiante e era patente o desespero do animal. Era uma imagem aterrorizante a do fantasma a se mover assintosamente lá, sempre lá por aquela passagem. O rapaz desceu do cavalo, pegou-lhe pelo arreio e começou a caminhar à pé. O cavalo mantinha-se em pânico, relinchando e tentando sair dali, não fosse a mão firme que o segurava pelo freio e ainda o forçava a ir adiante.
Foram chegando, rapaz e cavalo e mais ninguém, e o fantasma no auge de seu cinismo mantinha-se no mesmo ponto a se mover. Não se dava ao luxo de alguns fantasmas dos quai ouvimos falar que, ao serem observados mais de perto, somem, fogem, evaporam-se. Este, não, manteve-se lá naquela espécie de dança provocativa, aquele movimentar-se estranho sem sair do lugar, como se bandeira flamejante. Fixo, mas móvel. O rapaz foi se aproximando e se aproximando, tomado de medo, mas também de decisão, pois sabem os sábios que coragem não é ausência de medo, mas a capacidade de enfrentá-lo. Se não houvesse medo, a coragem não seria coragem. O caminho parecia interminavelmente longo, distante e desafiador. O suor frio, o cavalo cada vez mais em pavor, cada vez mais em recusa e exigindo mais das mãos do jovem da roça que o mantinha firmemente seguro nas mãos. Nem era louco de chegar lá sozinho, pois houvesse o que houvesse, mesmo o cavalo não tendo querido lá estar, lhe serviria de montada para voltar a galope, em fuga. E o caminho foi chegando ao fim, o fantasma se agigantando pela proximidade, pelo medo, pela incidência da luz da lua. Não recuou, o rapaz, enquanto o cavalo dava mostras de estar prestes a desmoronar ali mesmo de medo.
Chegou, enfim, diante do fantasma. Agora não dava mais para fugir. Estavam frente a frente, cara a cara. Procurou o olho do fantasma para encará-lo nos olhos, mas não tinha olhos. Era fantasma disforme. Quando já lá, bem próximo, o cavalo parecia alheio, passara-lhe o pavor. O rapaz encarou o fantasma bem de perto, quase grudando nariz com nariz, por modo de dizer, uma vez que o fantasma não tinha nem olho e nem nariz. Bem perto, quase a tocar o fantasma, este se desfez. Eram então centenas de larvas que, à luz da lua, brilhavam num belo tom e que se moviam para cima e para baixo no tronco de uma enorme árvore. Ali o fantasma ruiu. O fantasma estava morto e reduzido a larvas, simples mandruvás que, depois de passada aquela época, aquele ciclo de todos os anos, virava centenas de borboletas a colorir os campos antes aterrorizados pelo fantasmas. O fantasma morreu, foi desmascarado. Ninguém antes havia desmascarado aquele fantasma, que por anos aterrorizou os moradores daquelas fazendas nos arredores de São Gotardo, Minas Gerais.
Voltou à sede e contou aos outros o sucedido. Estava terminado o terror. Eram larvas, mandruvás, nada além disso. Por isso a lua clara era necessária para que ele se fizesse ver e assintosamente ensaiasse durante toda a noite clara sua dança ameaçadora.
O caçador de fantasmas era meu pai, que morou mesmo na roça e só começou a estudar aos 18 anos de idade. Viria a estudar odontologia, embora o sonho fosse medicina e tivesse um enorme encantamento por construções. Estudou também contabilidade. Clinicou por dois anos como cirurgião dentista mas acabou por seguir carreira pública no INPS no que seria hoje auditor fiscal, mas na época eram outros os nomes, as siglas. Foi funcionário exemplar, casou-se tarde, teve dois filhos e faleceu precocemente aos 53 anos de idade, bem diante de mim, então aos 6, por parada cardíaca subita, consequência de doença de chagas, provavelmente adquirida nos tempos de roça. Além de cirurgião dentista, contabilista e fiscal do INPS, foi também caçador de fantasmas e é esta a atividade dele que eu mais gosto de relatar. Hoje o fantasma é morto e ele é uma lembrança saudosa: meu caçador de fantasmas se foi e agora eu tento encarar os meus, sem cavalo a me acompanhar. Mas a lição ficou: encarar os fantasmas os desmonta. Temos de conhecê-los, nomeá-los, desmontá-los, e não há outro meio. Nem sempre, quase nunca ou nunca, é fácil, mas necessário.
São Gotardo seguiu sua pacata rotina, mas os peões e moradores ficaram mais em paz. O fantasma havia morrido, sido desmascarado, diluído em belas larvas, belos mandruvás que refletiam a luz da lua e se amontoavam como se fossem um corpo só. Agora todos voaram... Tanto os fantasmas como os belos seres um dia se vão.