segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O fantasma

Os fatos aqui narrados ocorreram em uma fazenda nos arredores da cidade de São Gotardo, interior do estado de Minas Gerais, nos idos dos anos 30 do século passado. Nesta fazenda morava um bravo rapaz, que devia então ter menos de 18 anos, pois foi aos 18 que teve a oportunidade de começar a estudar. Todos os anos, numa época específica, a região era atormentada pela aparição de um fantasma terrível e que não era desses caprichosos que só aparecem para alguns, mas para todos, inclusive aos animais. O fantasma só era visto ao longe, movendo-se em noites de lua, assintosamente visível aos crédulos e aos incrédulos. De nada adiantava as rezas e orações feitos pelos mais penitentes e fervorosos moradores e peões das fazendas da região. Era fantasma famoso e, embora sem nome, já renomado. Cavalos, gatos e cachorros se negavam a passar por onde o fantasma ficava. Havia um lugar predileto do fantasma e, pelo menos por aquelas paragens, era sempre lá que ele ficava. E não adiantava: cavalos relichavam e davam coices, cachorros ladravam, gatos se esquivavam. Dos pássaros não sei dizer se havia boa convivência ou não. No escuro, após o por do sol, os pássaros são discretos e nos fogem à percepção.

Insistentemente lá estava ele, todas as noites a mover-se no mesmo ponto, a provocar e amedrontar a todos. Era assunto nas rodas de conversa, no tecer prosa de pessoas reunidas nos momentos de descanso. Logo de manhã, quando, como de costume, acordavam os peões ao trabalho, lá estava o fantasma. Era preciso que esperassem que se fosse antes de cruzar aquele caminho, para quem lá tinha de passar. Ninguém o enfrentava. Fantasma que aparece pra todo mundo é abusado demais, nem dá pra ser negado ou tido por alucinação, nem mesmo coletiva, uma vez que animais não seguem alucinações coletivas. Estavam lá os cavalos e outros animais também a provar a todos a veracidade dos fantasmas. E ele gostava das noites de lua clara. Se cheia, tanto melhor, se divertia mais às custas dos moradores da roça.

O bravo rapaz a que me referi era intrigado com o fantasma e, como viria a demonstrar sua vida posterior, embora curta, era dado a querer se aprofundar em conhecimentos. Um fantasma com quem não estivera era um fantasma a conhecer. Daí, contrariando as advertências de todos os moradores que horrorizados pediam-lhe que não fizesse aquilo, ele, numa noite, decidiu pegar um cavalo e ir ter com o fantasma. Pegou o cavalo, cuidadosamente lhe pôs sela, estribos, freios e essas coisas de que os peões da roça conhecem e nós, os ditos civilizados, desconhecemos ou sabemos pouco. Era bom cavalo, há de se presumir, e de confiança, pois para tal tarefa não seria escolhido um cavalinho qualquer desses que se assustam até se a égua fosse maior um pouco. Não! Era cavalo bravo, cavalo dos bons. Tudo certo, montou o cavalo e saiu a galope em direção ao fantasma, mas não havia pensado que também o valente cavalo, companheiro do dia de trabalho, fosse dar o vexame de se amedrontar, mas foi assim que sucedeu. O cavalo, vendo o fantasma, empinou, relinchou, tentou voltar, mas o rapaz não desistiu. Metia-lhe as esporas, mas de nada adiantava: o cavalo se negava a ir adiante e era patente o desespero do animal. Era uma imagem aterrorizante a do fantasma a se mover assintosamente lá, sempre lá por aquela passagem. O rapaz desceu do cavalo, pegou-lhe pelo arreio e começou a caminhar à pé. O cavalo mantinha-se em pânico, relinchando e tentando sair dali, não fosse a mão firme que o segurava pelo freio e ainda o forçava a ir adiante.

Foram chegando, rapaz e cavalo e mais ninguém, e o fantasma no auge de seu cinismo mantinha-se no mesmo ponto a se mover. Não se dava ao luxo de alguns fantasmas dos quai ouvimos falar que, ao serem observados mais de perto, somem, fogem, evaporam-se. Este, não, manteve-se lá naquela espécie de dança provocativa, aquele movimentar-se estranho sem sair do lugar, como se bandeira flamejante. Fixo, mas móvel. O rapaz foi se aproximando e se aproximando, tomado de medo, mas também de decisão, pois sabem os sábios que coragem não é ausência de medo, mas a capacidade de enfrentá-lo. Se não houvesse medo, a coragem não seria coragem. O caminho parecia interminavelmente longo, distante e desafiador. O suor frio, o cavalo cada vez mais em pavor, cada vez mais em recusa e exigindo mais das mãos do jovem da roça que o mantinha firmemente seguro nas mãos. Nem era louco de chegar lá sozinho, pois houvesse o que houvesse, mesmo o cavalo não tendo querido lá estar, lhe serviria de montada para voltar a galope, em fuga. E o caminho foi chegando ao fim, o fantasma se agigantando pela proximidade, pelo medo, pela incidência da luz da lua. Não recuou, o rapaz, enquanto o cavalo dava mostras de estar prestes a desmoronar ali mesmo de medo.

Chegou, enfim, diante do fantasma. Agora não dava mais para fugir. Estavam frente a frente, cara a cara. Procurou o olho do fantasma para encará-lo nos olhos, mas não tinha olhos. Era fantasma disforme. Quando já lá, bem próximo, o cavalo parecia alheio, passara-lhe o pavor. O rapaz encarou o fantasma bem de perto, quase grudando nariz com nariz, por modo de dizer, uma vez que o fantasma não tinha nem olho e nem nariz. Bem perto, quase a tocar o fantasma, este se desfez. Eram então centenas de larvas que, à luz da lua, brilhavam num belo tom e que se moviam para cima e para baixo no tronco de uma enorme árvore. Ali o fantasma ruiu. O fantasma estava morto e reduzido a larvas, simples mandruvás que, depois de passada aquela época, aquele ciclo de todos os anos, virava centenas de borboletas a colorir os campos antes aterrorizados pelo fantasmas. O fantasma morreu, foi desmascarado. Ninguém antes havia desmascarado aquele fantasma, que por anos aterrorizou os moradores daquelas fazendas nos arredores de São Gotardo, Minas Gerais.

Voltou à sede e contou aos outros o sucedido. Estava terminado o terror. Eram larvas, mandruvás, nada além disso. Por isso a lua clara era necessária para que ele se fizesse ver e assintosamente ensaiasse durante toda a noite clara sua dança ameaçadora.

O caçador de fantasmas era meu pai, que morou mesmo na roça e só começou a estudar aos 18 anos de idade. Viria a estudar odontologia, embora o sonho fosse medicina e tivesse um enorme encantamento por construções. Estudou também contabilidade. Clinicou por dois anos como cirurgião dentista mas acabou por seguir carreira pública no INPS no que seria hoje auditor fiscal, mas na época eram outros os nomes, as siglas. Foi funcionário exemplar, casou-se tarde, teve dois filhos e faleceu precocemente aos 53 anos de idade, bem diante de mim, então aos 6, por parada cardíaca subita, consequência de doença de chagas, provavelmente adquirida nos tempos de roça. Além de cirurgião dentista, contabilista e fiscal do INPS, foi também caçador de fantasmas e é esta a atividade dele que eu mais gosto de relatar. Hoje o fantasma é morto e ele é uma lembrança saudosa: meu caçador de fantasmas se foi e agora eu tento encarar os meus, sem cavalo a me acompanhar. Mas a lição ficou: encarar os fantasmas os desmonta. Temos de conhecê-los, nomeá-los, desmontá-los, e não há outro meio. Nem sempre, quase nunca ou nunca, é fácil, mas necessário.

São Gotardo seguiu sua pacata rotina, mas os peões e moradores ficaram mais em paz. O fantasma havia morrido, sido desmascarado, diluído em belas larvas, belos mandruvás que refletiam a luz da lua e se amontoavam como se fossem um corpo só. Agora todos voaram... Tanto os fantasmas como os belos seres um dia se vão.

10 comentários:

  1. "meu caçador de fantasmas se foi e agora eu tento encarar os meus, sem cavalo a me acompanhar. Mas a lição ficou: encarar os fantasmas os desmonta. Temos de conhecê-los, nomeá-los, desmontá-los, e não há outro meio. Nem sempre, quase nunca ou nunca, é fácil, mas necessário."

    adorei essa parte. Apesar da dor, gosto de lembrar da minha mãe também como uma heroína, uma guerreira, uma fada, uma princesa, um anjo. Alias, é o que ela representa pra mim. Tenho muitas histórias pra contar da mulher que ela foi. :)

    E eu to lutando contra meus fantasmas, não é fácil, mas to destruindo-o.
    Beijos, tudo de bom.

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  2. Adorei seu conto! São essas histórias que mantém vivas as tradições e as memórias dos nossos antepassados.
    Nesse caso sei que tem um sabor especial porque é uma lembrança importante da sua infância, das aventuras vividas pelo seu pai e transmitidas a você, que um dia transmitirá aos seus filhos, não só as suas próprias lembranças mas as lembranças daqueles que você ama. Eu acredito que isso seja um pouco da "imortalidade". As lembranças daqueles que amamos, sendo contadas ao longo de gerações.
    Eu já conhecia essa história, mas fiquei tocada pela maneira como a escreveu. Sabe Ivan, na vida é preciso coragem, coragem para amar, para buscar nossos sonhos e desvendar nossos mitos, sem ela a vida seria um mar de estagnação.

    "Devemos construir diques de coragem para conter a correnteza de medo" (Martin Luther King).

    Beijão e coragem, sempre!

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  3. Kenia,
    Eu conheço essa história contada bem resumidamente, e depois que ela me veio à tona por esses dias, ao contá-la pra você e pra Gê, deu vontade de passá-la pro "papel". Gosto de sentar e escrever "quando baixa o santo" (rs...).
    A "imortalidade" às vezes está nessas coisas, mesmo: no perpetuar de histórias, valores, sentimentos ou modos de sentir, de ver a vida.
    Sobre a coragem, uma coisa interessante sobre ela, e que está na frase que você citou do Martin Luther King, é que ela não significa ausência de medo, mas sim o enfrentamento do medo. O medo, muitas vezes, é um fantasma como esse que, se encarado, se mostra algo completamente diferente.
    Beijo grande.

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  4. Ivan,
    Fiquei apaixonada, ao começar a ler essa história,pela complexidade desse Rapaz de 18 anos que apesar de ser analfabeto e ter que enfrentar tantas dificuldades, tal qual Dom Quixote, lançou mão do seu Rocinante e saiu preparado para uma luta, tão desigual, pois se tratava de um ser sobrenatural que ninguém nunca sequer em um devaneio soube dizer como tal criatura poderia ser destruída ou se poderia ser....
    Pensei em todo sofrimento que poderia ter sido evitado se desde seu aparecimento tal fantasma tivesse sido encarado por alguém da vida...ou da vila..
    O caso é que para enfrentar fantasmas é necessário muito mais do que coragem, é necessário força e ternura, instinto e alma de cavaleiro andante.. E como são raros os "Dons Quixotes", e como são raros os "Rocinantes" também os "Sanchos" e as "Dulcinéias"...
    Como é dificil saber-se tão impotente quando se sabe exatamente a localização do fantasma...E quanto nos custa acreditar que ele poderá sucumbir a nossa presença e enfrentamento!...
    Inspirador...
    Vc nunca havia me contado essa história, no início achei que esse bravo Cavaleiro narrado era fruto de sua versátil imaginação, quando percebi que o tal rapaz na verdade era seu pai me arrepiei e me apaixonei mais ainda pela história ...De longe seu melhor "personagem" o mais complexo e adorável..Que bom para ele,e que bom para vc! Parabéns!
    Ameiiiii!!

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  5. Rafaela,
    Conte essas histórias da sua mãe. Vale a pena! E acho que vale a pena pela memória dela e em especial pra você (nós, os que ficamos). Dão ótimas histórias, nos fazem bem, nos reaproximam do que parecia ser impossível de que nos reaproximássemos: os que partiram. Mas alguma reaproximação há. E, como disse a Kenia, é nisto que reside um pouco da "imortalidade", tendo cada qual seus conceitos a respeito. Esta perpetuação pela lembrança, pelas lições, pelas histórias divertidas, heróicas, engraçadas etc. são o que temos de mais tangível da "imortalidade".
    Beijo.

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  6. Aline,
    Seu comentário ficou num misto de profundo com divertido, porque quando você cita Don Quixote, Sancho Pança, Rocinante e Dulcinéia, é impossível não rir, para quem leu o romance.
    O moínho de vento foi desmascarado, e eram larvas, mandruvás que brilhavam à luz da lua. Também gosto desta história. Gosto de colecioná-las. Aos poucos vou desenterrando e colocando-as aqui. Comecei com a do meu avô e os sapos, agora esta do meu pai e o fantasmas. Tem outras por vir aí.
    Beijo.

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  7. Prestenção...leia denovo!!! não eram moínhos eram gigantes...não eram larvas era fantasma!rsrss...
    + beijo!

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  8. Gosto muito dessas narrativas, que encontram uma maneira serena de dizer coisas mais intensas...E isto é sempre bom, para alimentar qualquer fantasma que possa estar usufruindo de seu conto...Na esperança de encontrar nele um manual de sobrevivência ou de fuga...Quantos espectros deixam de existir sem se conhecerem?...Acredito que muitos, passam pelas roças da vida sem se quer ser notados... Não este... A quem vc deu vida, Ele pode sair das sombras e apreciar a luz clara da lua, até que deixasse para trás seus pedaços...Suas larvas , dando fama ao jovem rapaz, que parece o motivo real do conto...

    Gostei mesmo...

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  9. Ivan, eu acho que você deveria apostar mais na escrivinhação de contos, embora seja uma história verídica podia muito bem ser inventada, você tem paciência para as descrições. Ficou ótimo!!!

    Beijo grande!

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  10. Nossa, Fernanda,
    Ouvir isso de você é de encher a bola de qualquer um. Obrigado! To engatinhando nisso, ainda, mas vou seguir a sugestão, ainda mais depois desse incentivo.
    Dê uma olhada depois no A Criação do Alfabeto e me diga o que achou. Ele foi escrito em três etapas e às vezes ainda acho que ele pode ser mexido. Mas também acho que ele, pela idéia inicial, sempre poderá ser mexido. Quero te ouvir, quando der.
    Beijo grande.

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