Era tarde, fim de semana, tinha de ser. Tinha 13 anos de idade e cursava a 6ª série do primeiro grau no Ateneu Dom Bosco. Estava com o sobrinho da vizinha, tomando conta do pirralhinho que eu adorava (sempre adorei crianças) e fui levá-lo para a casa da avó, a vizinha. A casa ficava nos fundos de outra casa, ambas antigas, mas em estilos distintos, sendo a dos fundos mais antiga que a da frente. Tinha portas e janelas de madeira maciça com venezianas e, para o caso das janelas, havia aquela tramela, uma espécie de trava, que ficava do lado de fora para prender a janela, quando aberta. A janela era alta, a tramela era alta, consequentemente. O pirralhinho, a quem chamávamos de Chico Maraca, mas tinha o nome de João Daniel, saiu correndo atrás de uma barata e eu, instintivamente, me curvei pra correr atrás dele e evitar que pegasse a barata. Tummmmmmmmm!!! Meti a testa, do lado esquerdo, bem na sobrancelha, na tramela. Ergui-me tonto e, de repente, perdi a visão do olho esquerdo. Levei a mão ao olho e jorrava sangue. Reação imediata, sair de lá "calmamente" gritando "To ceeeeego, to ceeeego" e logo cheguei em casa. Éramos vizinhos de muro, mesmo. Minha mãe, já tendo ouvido o grito desde o nascimento, foi até o portão que dava entrada do alpendre-garagem para o quintal, viu a situação (nada bonita), segurou nos meus braços, olhou nos meus olhos (mas não sei se nos dois, já que um não era visível) e me disse, de forma firme, "Meu filho, você tem outro olho". Genial! E eu nem tinha pensado nisso. Eu tinha outro olho! Pra que me desesperar, então? Que besteira. Dizem que a mãe do Saci Pererê disse a mesma coisa pra ele quando ele perdeu a perna: "Saci, meu filho, você tem outra perna", e ele saiu feliz e sapeca pulando na perna restante. Comigo foi diferente a aceitação. Fui levado ao banheiro, sangue jorrando. Ao chegar ao banheiro, e minha mãe pedindo calma (afinal eu tinha mesmo outro olho), olhei-me no espelho e vi o estrago: sangue coagulado, sangue jorrando, a sobrancelha partida em duas, mas próximo do nariz, a um terço aproximadamente, e a parte externa da sobrancelha estava lindamente caída em cima do olho recíproco, que não era visível. Visível era, também o osso da minha testa. Não foi corte, foi rasgo. Soro fisiológico, lógico!, água limpa, algodão e, claro, muita calma. Minha mãe sempre teve muito jeito pra isso e, apesar da frase infeliz, embora realista, mantinha a calma e o controle. Foi limpando super hiper cuidadosamente, removendo sangue coagulado com a maior delicadeza possível e necessária. De repente sai um coágulo enorme, percebo luminosidade, ela limpa mais e eu exclamo "To vendo". Foi por um triz. Minha pálpebra chegou a se arranhar, mas o olho estava intacto... O osso da testa, também, e bem visível, branquinho. Pegamos o Trovão Azul, nosso fusquinha modelo/ano 1971 (ainda vivo) e, em caravana (por que? Não sei!) fomos procurar um pronto-socorro que fizesse um servicinho bom. Foi difícil achar, porque queriam que me dessem pontos dignos. Foram 3 camadas de pontos, 21 pontos no total. Hoje não dá pra notar, a não ser que eu mostre. Ficou perfeito e me dei melhor que o Saci.
O Chico, que tinha este apelido porque o pai dele tinha mania de colocar apelidos nos filhos que não tinham nenhuma correlação com o nome, era um menino lindo, inteligente. Nesta época devia ter uns 2 anos de idade. Cresceu, mudaram-se de lá para a Nova Suíça numa casa com quintal grande e árvore enorme. Estudava de manhã. A árvore grande começou a atrapalhar e tornou-se um estorvo. Que eu saiba ela estava apodrecendo. Foi contratado um jardineiro ou algo que o valha para remover a árvore. O Chico chegou da aula perto da hora do almoço, foi até a cozinha tomar água, tinha então 14 anos de idade, e saiu no quintal enquanto o homem trabalhava sem perceber sua chegada. Sem aviso, embora tenha havido a tentativa de aviso do irmão dele, um galho recém serrado se precipitou do alto da árvore e caiu bem em cima do Chico. João Daniel morreu! Seu irmão, que viu tudo, nunca mais voltou ao normal. Já se passaram 2 décadas e o choque permaneceu, anulou-o. Nunca mais os vi, embora tenhamos ocasionalmente contato com a avó dele, já com mais de 80 anos atualmente. O Chico, que era João Daniel, foi a primeira criança a que me afeiçoei de verdade, talvez expondo meu instinto paterno (e não fui pai, ainda). Me lembro dele é pequeno, quando era vizinho da minha casa, mas quando recebi a notícia me recusava a acreditar. Acho que ainda não acredito. Tem certos absurdos que são tão imbecis que é difícil de crer na co-incidência dos fatos, da simultaneidade. A isso se chama tragédia, perda, dor, lacuna.
Meu olho está aqui, intacto, perfeito, e a saudade também. Saudade do Chico e de tantas outras pessoas das quais já me despedi para o "além". Saudade, Chico. Piscadela de olho esquerdo pra você, moleque.
AIAIAIAIAIAaiaiaaiia....tão bem descrito e escrito que esse sangue escorrendo...essa cegueira momentanea e essa pálpebra - pior parte- PENDURADA....affff... me fizeram várias vezes parar a leitura respirar fundo segurar meus olhos e pensar ta tuuuuudo bem....rsrsrsrs....
ResponderExcluirmas falando serio, como são faceis e gostosas suas narrações...todo conto contado aqui nunca parecem longo porque é consumido de maneira praseirosa de mensagem simples e profunda!
E me impressionou demais a história do João... Como a vida é frágil e boba...Como a foto casou bem...Fiquei arrepiada!
BeeeeeijÃO!!!
É, Ivan, parece que os pontos dignos dos treze anos quem dá agora és tu com estes sabores em piscadelas do imaginário...
ResponderExcluirE para encurtar a saudade um beijo amigo e carinhoso.
C
Eu morri de rir quando vc disse "que sorte eu tinha mesmo outro olho"!!! Boboooooo!!!! Adorei essa! Vc me fez lembrar da minha infancia! Ai que saudades que dá!
ResponderExcluirIvan, sobre a poesia que vc comentou, até agora ninguem leu algo que está nas entrelinhas, mas vc não entenderia muito o motivo, mas outras pessoas (do dihitt) sim! Vai ver que tá todo mundo lendo com um olho só! caolhos!
Beijos