quarta-feira, 14 de abril de 2010

Retrato da dignidade maltratada

A casa era antiga e tinha muretas e grades baixas com portões que sempre ficaram abertos, destrancados, invariavelmente, por toda a vida. Para tocar a campainha era preciso chegar até o alpendre e já estar diante de uma porta de madeira antiga de duas folhas com portinholas individuais de moldura de madeira, uma gradezinha e vidro canelado. Ele entrou timidamente, era depois do meio dia, tocou a campainha e aguardou. Era um senhor de idade, maltratado pelo tempo, mal vestido, de aparência sofrida, triste, mas extremamente digna. Não me lembro que idade eu tinha, mas é como que ontem. Minha mãe atendeu à porta e ele pedia umas moedas e, "sem querer abusar", nas palavras dele, "um copo d'água". Vestia roupas surradas, mas dentro de sua dignidade foi com dificuldade que pediu. Minha mãe, como era de seu feitio, e ainda é, vendo sua situação, lhe perguntou se ele já havia almoçado e ele, de uma forma que eu não saberia reproduzir aqui, disse que não, mas meio que se esquivando, pois não estava ali para pedir que lhe dessem comida. No olhar daquele senhor, estampadas a resignação, a dignidade e a tristeza, tudo a um só tempo. Ela lhe pediu que aguardasse e ele a perguntou se havia algum incômodo em se sentar no chão para esperar. Nosso alpendre, naquela época, não tinha cadeiras: piso de ladrilho vermelho encerado em formato hexagonal. Em tempos anteriores já tivera cadeiras, mas não mais, então. Naquele pedido, além de tudo o que já tinha sido possível ler em sua aparência, fisionomia, educação e voz, ele contou, só por pedir isto, que também estava cansado e fraco. Passados poucos minutos minha ela retornou com um farto prato de comida, um copo e uma garrafa d'água, pra que ele bebesse à vontade. Este homem, do alto de toda sua dignidade desamparada, não soube como conter seu espanto, nem como conter sua emoção. Desabou num choro convulsivo e compulsivo, como quem não acreditava haver alguém que lhe estendesse a mão, pois já estava acostumado a não ser visto como gente ou até mesmo como não ser visto. Encontrar alguém que via nele a seriedade, a honra e a dignidade que tinha, o fez desmoronar, dignamente. Chorou tanto que demorou um tempo para conseguir começar a comer, e aí também denunciou sua enorme fome, pela forma ávida, não deseducada, apenas ávida, com que comeu aquele prato bem servido. Minha mãe conversou com ele, falou e ouviu, ofereceu mais comida, que ele recusou. Ele demonstrou, também, que precisava ser ouvido. Eu, na minha meninice ou pré-adolescência, acompanhava a tudo sem nada dizer, mas surpreso com as informações que ali estavam contidas. Tendo terminado de comer, de beber sua água e já tendo conversado, disse que já tinha que ir. Foi então que ala lhe estendeu a mão com uma quantia de dinheiro que ultrapassava grandemente as moedas (na verdade restos) que ele havia pedido cheio de vergonha. Relutante, não queria aceitar, mas ela foi insistente e convincente de uma forma só dela. Era claro, por toda a observação e pela conversa que fluiu, que ele não tinha amparo algum, já não tinha idade para trabalhar (imagino que tivesse mais de 70 anos, pela lembrança). Relutante e chorando sem parar, ele aceitou, mas não tinha palavras para agradecer (e se sentia na obrigação), mas mal conseguia falar. Bendisse a deus e todos os santos – estes que também o desprezavam e o ignoravam – e agradeceu infinitamente, em prantos, desejando-nos tudo de melhor. Foi preciso nova conversa longa para apaziguá-lo, para minimamente serenar aquela alma sofrida e maltratada pela vida. Daí ele partiu. Nunca mais o vimos, embora eu o veja aqui na minha mente ainda agora, como vejo a casa que abrigou minha infância e adolescência, mas sucumbiu à modernidade dos prédios. Ele partiu, seguiu seu rumo incerto e solitário. Nós ficamos partidos, tremendamente tocados, embora já fôssemos de alguma forma partes de algo quebrado. Depois foi nossa a vez de chorar por aquela realidade, por esta confrontação inevitável que a vida nos impôs diante do injusto e de nos vermos impotentes. Ser humano é ser impotente, mesmo, limitado. Já se passaram muitos anos, algumas décadas. Muito provavelmente, ou quase certamente, este homem, que já era de idade, já deve ter falecido. Quando? Onde? Como? Ao lado de quem? Em que circunstâncias? Não sabemos nem nunca saberemos. Aqui na lembrança que esses fatos deixam na alma, ele está vivo, ainda de pé no alpendre da minha casa velha, dignamente de pé e tristemente retratando a desigualdade humana, a falta de dignidade do mundo e da vida diante da dignidade dos homens comuns. Ele foi, como tantos, o retrato da dignidade maltratada.

2 comentários:

  1. É, perante os vitrais da memórias, revisamos atos, revisamos momentos e na escritura despenduramos os fantasmas.

    Retratos assim é que nos autorizam a sermos mais nomeações do que tereres.

    Um beijo amigo Ivan e que bom ter esta leitura.

    Carmen Silvia Presotto

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  2. Ivan,

    Tão bem descrito que a gente ate se sente no local e vive junto toda situação...Consegui ver sua cara de menino enquanto absorvia tudo mudo com essa sensibilidade única que lhe é inerente desde sempre!Não teve fila do abraço mas eu pude quase pegar na sua mão nesse momento...
    Muito lindo!

    Ah.. e a imagem... nossa já te disse... AMEI MUITO!!!
    Combina muito com o conto porque os são do mesmo tom... Começam desiludidos nesse vermelho como sangue diluído no céu que de tão brando em seu azul acaba fazendo tudo cor de rosa...Sem falar no contraste mágico que causa o negro das árvores tão fincadas no chão...
    Adorei mesmo...
    E olha eu aqui exagerando denovo nos devaneiosssssssss... Não é culpa minha é o escritor que é bom!....Nem adianta reclamar...rsrsrsrs
    Beeeeeeeeeijo!

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