quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O poço

Era bem cedo quando recebeu as instruções, não se lembrava exatamente em que termos, se diretos ou indiretos ou de quem exatamente. A meta dada era cavar um poço profundo e seguir cavando. Pegou enxada, alavancas, pás, baldes, montou um sarilho, demarcou a boca do poço com diâmetro de aproximadamente dois metros e iniciou o trabalho. Era bem cedo, era bem novo. Não sabia muito bem como manusear as ferramentas, mas a instrução fora dada. Não imaginava que o trabalho seria tão árduo e menos ainda quanto tempo levaria, a que profundidade deveria chegar. Ordens são ordens. Pobre imbecil aquele. Organizou-se de forma a ele mesmo, num sistema de roldanas, jogar a terra para fora sem necessitar de ajuda. Ele mesmo cavava, escolhia as melhores ferramentas conforme a camada do solo em que estivesse e colocava a terra num balde que era içado lá mesmo de baixo ao topo, caminhava por roldanas, virava e deitava a terra ao redor do buraco e voltava engenhosamente lá para o fundo. Ao longo do tempo de trabalho se deparou com camadas diversas de terra: mais macias, argilosas, arenosas, siltes, rochosas, mistas e de diversas resistências. Não demorou muito para que chegasse no lençol freático. Seria preciso providenciar uma bomba de sucção, e assim o fez. A bomba trifásica ficava constantemente ligada de modo a escoar a água para fora. Quando faltava luz era um caos. A lama que já lhe impregnava não só o corpo, mas também a alma, lhe entrava por todos os poros, pelos olhos, boca, nariz, ouvidos, mas tinha que esperar e retomar o trabalho. Enquanto faltava luz, tirava a lama e a água com o balde, numa luta sem fim. Ainda não sabia qual seria a remuneração a ser recebida por aquele trabalho, mas imaginava ser algo muito bom, já que foi incumbência única: “É sua a incumbência a partir de agora, abra o poço, cave, ninguém mais deve fazê-lo, abra-o por si”, e assim vinha fazendo em sua longa jornada de poceiro. Ia cavando ininterruptamente, mal e porcamente descansava. Lavar-se, só com a água da chuva, mas a partir de certa profundidade tornou-se praticamente impossível voltar à boca. Dormia lá no fundo úmido e escuro, frio, às vezes, e solitário, mas levava a meta como uma missão, um oráculo, predestinação, tarefa irrecusável sob severas penas, pensava ou intuía. Já não sabia a que profundidade estava, a bomba de sucção de água havia sido substituída por uma mais potente e ainda assim chafurdava na lama para tentar manter uma mínima ordem dentro daquele imenso buraco. A luz do dia mal chegava lá. Alguém lá de cima lhe fez descer uma gambiarra com uma lambada incandescente de 60 watts na ponta. Era a única luz que havia. Quem lhe provia de bombas e luzes e alimentação lá de cima? Não sabia, mas suspeitava que a mesma pessoa que lhe ordenara abrir o poço e cavar e cavar e cavar ininterruptamente. As noites de sono eram curtas e nem sempre eram à noite. De tão profundo estava, já mal distinguia dia e noite, era tudo meio breu, muita lama, comida ruim, o barulho constante da bomba de sucção e o dividir o dia a dia com suas ferramentas de trabalho. Passou-se um período de tempo muito longo que, estranhamente, ele nem percebeu. Aquele poço era um feito fantástico, tamanha a profundidade e perfeição no diâmetro, no prumo, mas o que mais o admirava era a profundidade. Com a lâmpada ligada, já não distinguia, nem com esforço, o dia da noite. A comida chegava de corda, pelo sarilho, dentro de sacos plásticos, como se fosse lavagem, mas era comida fresca. Com a fome que tinha lhe parecia um manjar dos deuses. A água ia da mesma forma, mas em garrafões plásticos. Comia bem, não podia reclamar. Havia perdido a noção de tempo, havia perdido a noção de si, mas ainda assim achava que aquele poço, que aquela tarefa, era algo tremendamente ilustre. Um “poço sem fim”, pensava ele, orgulhoso do feito que ia fazendo. Os anos escavando lhe deram uma maestria enorme, inigualável. Progredia vários metros ao dia. Certa vez, junto com a comida e a água, chegou-lhe um bilhete enlameado pela descida onde se lia “Vai muito bem”. Abriu um largo sorriso e se encheu de entusiasmo para seguir escavando aquele “poço sem fim”. Ninguém havia dito que era um poço sem fim e bem sabia ele que aquilo não tinha cabimento. Haveria de chegar um momento em que as rochas seriam intransponíveis, mas havia nele um enorme prazer em intitular seu trabalho de “poço sem fim” ou até “poço sem fundo”. Quanto mais profundo, mais árduo o trabalho, o calor era insuportável, sua pele era já um couro ressecado e duro. Passou a usar picaretas e martelos e ia mais e mais sendo difícil aprofundar, mas ele conseguia, ainda assim, ir mais adiante. Os suprimentos de comida, água e lâmpada, da gambiarra que vez por outra queimava, continuavam com regularidade. Diálogo com quem estava lá em cima não havia, mas quando lhe parecia que ia se render, tamanho o sacrifício, tão grande o cansaço, tamanhas as dores e feridas e os questionamentos de “Por que um poço assim? Por que uma vida dedicada a isto?”, chegava-lhe um bilhete dizendo “Está fazendo uma obra prima. Parabéns” ou em outros “Ninguém além de você poderia fazer tão magnífico poço”. Retomado de energia e entusiasmo, escavava mais e mais e mais. Já não era exagero o nome que dera de “poço sem fim” ou “sem fundo”. Havia anos que estava ali sem conhecer a luz do dia, sem conhecer ninguém, sem qualquer contato que não aquele artificial de receber comida, água e bilhetes impessoais que o bajulavam. Cansou-se. Certo dia largou as ferramentas, colocou-as no balde e mandou-as para cima numa clara demonstração de cansaço, numa mensagem implícita que dizia “Estou farto, não vou mais continuar”. Gritou muito e parece que lhe ouviram. Puxaram a bomba de sucção pela corda e um facho de luz foi aceso lá do alto. Via uma cabeça de alguém, pelo menos era o que lhe parecia, a organizar as coisas. Não dava pra afirmar muita coisa, tamanha a profundidade, mas era a impressão ou a intuição. Talvez até, depois de tanto tempo, um pouco de alucinação, como quem vê miragens no deserto, e ali era mesmo um deserto sem vida. Ligaram um potente holofote mirando e iluminando o fundo do poço. A luz lhe cegou os olhos e um bilhete foi descido mais uma vez dizendo “Parabéns. Belo trabalho. Aguarde”, e ele aguardou. A luz continuava a iluminar. Na verdade aquela luz, de um holofote comandado por alguém lá de cima, era pra que a pessoa que ordenara e coordenara tudo o visse até a conclusão da meta. E qual era? Perguntava-se todo enlameado lá de baixo. Desceu outro bilhete dizendo “Fique num canto, vou descer um cabo”. Obedeceu, como sempre fizera. Passadas algumas horas chegou lá no fundo um cabo e ele compreendeu que era um cabo para içá-lo. Abriu um sorriso enorme e ainda leu o último bilhete que dizia “Agarre-se ao cabo” e assim o fez. Quando se deu conta sofreu uma descarga elétrica de mais de 5.000 Volts e foi arremessado violentamente contra a parede do poço semi-inconsciente. Com a ausência da bomba se sucção a água do lençol freático ia subindo não muito rapidamente devido ao baixo coeficiente de percolação do solo. Naquele estado, o corpo todo retesado, se questionou o que haveria acontecido. A luz do holofote se apagou, ficou na mais completa escuridão e retomou os sentidos no exato momento em que ouviu máquinas retroescavadeiras lá no alto movimentando toda a terra extraída por anos. Olhou uma última vez para cima, para um distante e apagado ponto de quase luz e sentiu um enorme peso de terra caindo sobre si. O poço foi totalmente coberto com a mesma terra, o poceiro fora soterrado vivo, mas perdeu rapidamente a consciência e também a vida. Era então bem tarde, era bem velho. No lugar onde fora aberto o poço fez-se, sabe-se lá quem, uma obra, como que uma lápide rústica de tijolos e concreto com os dizeres de um epitáfio: “Escavou um poço sem fim para fim nenhum, a não ser enterrar-se”.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Consuma(i)ção

A vida não é, definitivamente, um fato consumado, mas é, salvo raríssimas exceções, um fato consumista. Ao final de todas as contas, é um fato consumido.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Recaminho

Fotografia: Ivan Bueno
Sinto a pressão que se acomoda sobre mim
A tortura de momentos e estradas erradas
Posso ter seguido por bifurcações estranhas
Posso ter caído, mas me reergui, retomei
Olhei adiante, me guiei pelas estrelas, pelo sol
E pelo solo iniciei meu necessário recaminho 

Ainda que sozinho, ainda que no escuro
Soube admirar a lua nova, invisível e gentil
Dando espaço à visão de tanto céu a mais
Caminhando fui, estou, vou recaminhando, indo
Onde chegarei é incógnita, onde cairei é sentença
Não é necessário ter certezas, mas tolerá-las

Nesse recaminho vou, nesse recaminho me faço
Nessa estrada incerta e tortuosa me vejo
Busco, encontro, perco e reencontro de tudo
Um pouco de tudo, um pouco de nada: mundo, mundo
Um certo recaminho incerto tentando cobrir a solidão
Um recaminho pra cobrir a interrogação

Recaminho na interrogação jogando areia
Recaminho nas curvas, pulo sobre o ponto
Mas tudo é tão incerto que decidi não ter certezas
Estou certo disso e da imprecisão que se precisa
Estou incerto da certeza desse recaminho, recomeço
Recaminho, redestino, remar remar remar...

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Chuva

Estou assim:
A cada beijo que vejo
Desvio o olhar
Meus olhos se enchem
Me engasgo
E escorro por mim mesmo
Buscando um beijo
Seu e meu
Sem te saber quem
Sem me saber como
Querendo um quando
Desde que já

Terra

Minha espiritualidade se enroscou em minha pele, tomou um banho de Terra e se tornou agnóstica. Agora questiono tudo, duvido de tudo.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Viuvez

Matar mortos que precisam se tornar mortos morridos é algo fundamental na vida. Há tantos mortos vivos que nos perseguem por anos a fio e às vezes eles nem sabem!

Preciso de covas...