sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

É festa

Hoje era para ter festa
Era dia pra não sair de casa
A não ser pra ir ao teu apartamento
E festejar contigo
E festejar em família
Que sempre se unia ao teu redor
Hoje era pra ter festa
Mas hoje não vai ter quibes e esfihas
Nem pães sírios
E copos de refrigerantes
Todos mesclados a vozes felizes
Circulando pelo teu apartamento
Te abraçando
Te cumprimentando
Te festejando
Hoje é dia de lembrar
E todo mundo está se lembrando
Do teu jeito forte
Da tua presença doce, serena
Dos teus quitutes
E da delícia da tua presença
Há lágrimas
Não há como não haver
Pois houve uma despedida
Pois não te temos aqui plena
Mas na plenitude do amor
Continuas viva
E é sim dia de festa
Das que festejam tua existência
Tua vida, teu legado
E a gratidão da saudade
Que vem bem temperada
Com sal, cebola, hortelã, alho
E um monte de amor
E calor humano
Desse enorme ser humano
Que fostes, que és
Viva, que ainda estás
Dentro de todos nossos corações
Nas nossas lembranças
Viva Elza!

O bom risco

Nos riscos do amor, um deles
é exatamente o de dar certo,
e é exatamente por este risco
que devemos correr todos os demais.
A inércia é protetora dos covardes,
e já fui um em muitas ocasiões.
Mas a covardia e a inércia
trazem a "segurança" da certeza,
só que é a certeza
de nada a dar errado
é também de nada a dar certo,
pois nada tentado, nada vivido.
Este é, sim, o grande risco
a não correr: o não viver, o não amar.
Nem a tentação, tão boa, é tentada,
nem arriscada em meio à inércia.
Não correr riscos é mesmo não viver
E sucumbir ao poder da inércia, que mata.
Os riscos do amor são todos perigosos,
de perigo íntimo,
de se expor,
e não há como amar sem se expor,
sem ser ao menos um pouquinho ridículo,
divertidamente ridículo,
de conseguir rir de coisas bobas,
de se divertir com o pouco
e descobrir que o pouco é muito.
É preciso correr esses riscos
de julgamento, de rejeição,
mas de amor e aceitação, tesão.
É preciso superar os traumas anteriores,
jogá-los numa latinha de lixo
ou num arquivo morto qualquer.
É preciso ter esse arquivo,
estudá-lo e superá-lo.
Só assim se vive de verdade,
ao menos se tenta, tentado,
o dito atentado ao pudor.
Tentar, tentado, tentador...
amar é tentar, amar é ser tentado,
é não ter medo do risco de dar certo,
e às vezes nos acostumamos
tanto ao dar errado
que o dar certo assusta.
Não! Atentados ao tentar são boicotes à vida
e nos riscos do amor, mesmo,
um deles é o de dar certo,
e é exatamente por este risco
que devemos correr todos os demais,
sem pudor, sem medo da dor,
rumo ao prazer
e sem vergonha alguma.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Uma ode ao viver

Eu não quero pés atrás
Eu quero pés se entrelaçando
Almas e corpos se tocando
Eu quero olhos nos olhos
E medos compartilhados
Medos enfrentados
Fantasmas encarados
Neuroses conversadas
Enquanto os pés se tocam
Os pés, o corpo e tudo mais
Pernas confundidas
Braços procurados,
Dedos entrelaçados, porque sim.

Uma ode... Tudo de novo outra vez

Constrói-se com todo o cuidado, cultiva-se, aduba-se a horta
De repente um vento forte, inesperado,
Um vento do norte, sei lá donde,
Bate forte, arromba portas e janelas, aniquila o cuidado
Mata a horta, deixa tudo em destroços
Foi um terremoto, não é um Haiti,
Foi um monte de dor, visível
Sonhos voando por todos os lados, inescrupulosamente,
Vidas soterradas, esperanças sufocadas,
Um vento do sul, sei lá donde,
Bate cru, bate derrubando até mesmo as estruturas
Não restam plantas no quintal
O céu não mostra seu azul
As taças se despedaçaram
As núvens que pairam são cinzentas, de assombro
O rosto que se mostra nas formas amorfas
Formam rostos sádicos, de vida
São destroços de construções, de desejos, de sonhos
Desistências impostas, surpreendentes
Gente, gente, quanta querência!
Querer bem é algo perigoso? Não! Vale a pena viver
Ainda que passando pelo tormento
Ainda que absurdamente atormentado
Bate um vento do leste, sei lá donde,
Bate forte e não deixa gente de pé, não com firmeza
E amanhã? E depois de amanhã?
Tudo parece terminado, mas é ciclo
No circo do qual fazemos parte, bom e divertido,
Há espaço pra dor, sim há
Mas é suportável, ainda que pareça não
Bate um vento oeste, sei lá donde
Não deixa de pé nenhum cipreste, nenhuma rosa
A mais bela despetalou-se
Ao vento forte, ao abalo sísmico
Mas a rosa vai sobreviver, vai sim,
Que é rosa forte e bela
A raiz é firme, apesar do abalo, da dor, do despedaçar
A rosa chora, e sinto te dizer, Cartola,
As rosas falam e falam bonito
Escrevem, cativam, cultivam, dão o melhor de sí
São o melhor em si, mas perecem
Só que não é por fim,
É por recomeçar, frágil, mas forte, como é a rosa
Floresce de novo
É da natureza da rosa
É mais forte que o abalo e a destruição
E reina em meio aos escombros
E reconstrói tudo de novo... tudo de novo outra vez
Não há só uma taça, sempra há mais

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Olhar traiçoeiro

Preste mais atenção ao seu olhar,
mais que ao olhado.
Acho que é por ai a solução.
A gente olha e idealiza,
e cria expectativas,
ainda quando tenta se tolher.
Criar expectativas é criação das antigas,
de pouco depois
da expulsão do paraíso por deus.
Era a expectativa de que deus, justo,
chamaria de volta,
a expectativa de que a terra a arar
fosse sempre próspera,
o gado sempre gordo,
a pessoa amada sempre perfeita.
Daí a gente vai construindo
castelos de areia,
constrói junto a esperança
de um castelo inabalável,
mas a onda vem,
o castelo vai,
se não ao todo, em partes.
E quando a gente olha,
a gente vê o que olha, sim,
mas vê sempre através da lente
dos nossos olhos,
da lente dos nossos sentimentos.
Coração é óculos...
coração de ósculos,
carente de amplexos.
É bom prestar atenção ao seu olhar,
falo por mim, em especial,
mais que ao olhado.
O olho engana, mancomunado com a história
que a gente carrega,
associado com o passado recente
e o passado passado,
que não passou merda nenhuma.
Ficou, como lembrança, como trauma,
como marca feita a brasa,
com cicatriz de quem sobrevive,
mas a cicatriz é visível.
Preste, sim, atenção ao olhado,
mas lembre-se do engano que te faz passar
as lentes que te envolvem,
sempre te envolvem,
sempre nos envolvem
e muitas vezes distorcem.
Cuidado com as miragens.
Idealizar é criar miragens,
é tentar paragens onde não se para,
ou seguir onde se deveria parar.

Rotulação

Eu já fui tudo o que sempre quiseram
Eu já fui tudo o que nunca quiseram
Eu já fui anjo, já fui demônio
Já fui polido e arrotei no fim do banquete
Já soltei pum em público e assobiei
Já falei obrigado na hora certa, mas também já vacilei
Já salvei, já derrubei
Já me ergui e me espatifei
Já me rotularam com rótulos enormes
Já arranquei montes deles
Já colocaram de volta vários e outros novos
Já descobri que a vida é assim
Já tentei fazê-la diferente
Já desisti, porque é assim
Já deixei que colem rótulos e tentem entender
Já entendi que nunca se entende
Já que o que se entende se perde sem ser.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Medos fracos

Meu medo é corajoso,
não tem medo de ser medo,
e assume-se medo,
assume-se frágil,
assume-se humanamente
medonho
e medroso.
Minha fraqueza é forte,
pois busca sempre o rumo norte
a nortear seus quilograma-força.
Meu medo é o medo de quem pensa
e, por pensar,
conclui e,
por concluir,
concorda
e discorda
e tem dúvidas das próprias certezas
incertas e oscilantes,
mas nem todas.
Não tem dúvida do medo,
mas não sabe definir o perigo.
Não tem dúvida da fraqueza,
e sabe que a força
não está em vencê-la,
mas em render-se à existência dela,
assim como sabe que a coragem
não é a ausência do medo,
mas a capacidade
de encará-lo de frente e dizer:
Medo, qual o perigo?
E, ainda que com medo,
viver o que se tem pra ser vivido.

sábado, 23 de janeiro de 2010

O que são

Meus escritos são literários, não literais. Se forem literalmente lidos, nada acrescentarão. São catarse, são metáfora, são histórias contadas. Quem lê o lido como literal corre o risco de elegê-lo, como quem elege um "livro sagrado", como algo cheio de distorções que obedecerão aos olhos de quem lê, às neuras de quem vê, aos pensamentos de quem pensa saber o que lê. E não tem nada tão complexo nem tão confessionalmente injurioso. É leitura, é catarse. "Enjoy the music", e só!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Já fui astronauta de sucesso

Não havia o que temer, o mundo era seguro, totalmente seguro como nunca mais voltou a ser. Acordou ele da noite tranquila de sono, arrumou-se e, como eram férias, preparou-se para o dia de aventuras mundiais e universais a serem vividas no quintal de casa. Primos e amigos viriam. Neste dia, um primo. Imersos na despensa, feita laboratório da Nasa, criaram suas vestimentas de materiais especiais para as tarefas urgentes e importantes que os aguardavam: deveriam explorar um planeta inóspito e desconhedico, de pouca gravidade. Materiais separados, todos de alta tecnologia: papelão de caixa, presilhas de roupa, durex e esparadrapo, talvez também um grampeador antigo. Canetinhas ajudariam na criação de botões, visores por demais importantes pelos detalhes que mostravam e no design puro e simples em si.
Tomaram a nave, decolaram mesmo sem saber da existência de Cabo Canaveral, mas decolaram dali mesmo. Se não era Nasa, iam assim mesmo espaço afora. E, ah, que vista bela tinham da janela da nave-despença: estrelas, planetas, cometas, outras naves, até, tudo lindo demais. Viajaram bastante e distante, mas enfim chegaram e era hora de se vestirem com os trajes de astronautas. Assim o fizeram, pois dever há de ser cumprido à risca. Era hora de descer. A aterrisagem havia sido perfeita, sem trancos nem barrancos. O nível de oxigênio estava ok.
Desceram cautelosos, fingindo até mesmo um temor que não tinham. Foram, então, a explorar o planeta inóspito localizado... onde mesmo? Nem eles sabiam. Exploraram o planeta e tudo era mágico. O planeta era lindo, como o quintal da casa, ainda que fosse planeta inóspito. Veículo de locomoção era uma Monark Dobramatik azul, linda, veículo de última geração nessas explorações. Um "guiava" o outro ia na garupa, digo, na cabine complementar. No planeta havia vasta flora: jabuticabeira, mangueira, pé de figo, belas roseiras, duas goiabeiras, inúmeras flores e plantas, matinhos e ervas daninhas, que não danavam nada. Que belo planeta, que bela expedição. Os trajes funcionaram com pefeição inigualável a quaisquer outros e a quaisquer outras explorações a planetas inóspitos, se é que houve alguma mais. Eram pioneiros, claro. Aqueles outros lá tinha ido à lua, não estes aqui. Estes tinham ido a um planeta inóspito, e era lá que estavam. Era muito importante salientar que o planeta era inóspito, embora fosse totalmente seguro andar por ali. De seres vivos, nenhum apareceu. É possível que houvesse vida inteligente lá, além das dos valentes astronautas, mas não se fizeram conhecer. Exploraram tudo, naquele imenso e inóspito planeta-quintal. Comeram frutas e, olhe só!, não faltava lá oxigênio e nem se deram conta da diferença da força gravitacional. Não andavam aos saltos, como ocorrera com os outros na lua, mas normalmente.
Os dois astronautas conversavam entre sí, decidiam em conjunto o que seria explorado, como seria a viagem de volta. As mangas, as jabuticabas, os figos e as goiabas daquele planeta inóspito eram deliciosas. Com aquelas roupas não dava para subir nos pés, mas os habitantes desconhecidos do planeta tinham deixado varas específicas para a colheita das frutas. Comeram de se fartar. Depois, tendo tudo explorado e todas as coisas checado, anotado, regulado os botões das roupas espaciais, decidiram retornar à terra de onde partiram.
Voltaram com menos burocracias. Foi só decidir que voltariam, entraram na nave-despensa, tiraram os trajes especiais, um shhhhhhhhh sinalizou o barulho dos motores e já estavam de volta. Que aventura! Depois, anos se passaram, veio a idade adulta dos astronautas e as viagens desse tipo foram perdidas e ficaram na memória, apenas.
Os astronautas crescem e se esquecem de como viajar quando querem e pra onde querem sem precisar de quase nada. Acho que a criatividade se dilui no corpo que cresce e evapora um outro tanto. As lembranças, no entanto, ficam para sempre. O planeta inóspito, toda a viagem, os trajes, a espaçonave, nada disso jamais foi ou será esquecido.
Já fui um astrunauta de sucesso!... Eu era um deles!... Depois cresci.

A sala da vaca

Na tua sala está a corja,
O embuste,
O disfarce,
Está o interesse travestido
Em amizade,
Cordialidade.
É tudo pura e plena falsidade.

Na tua sala está a nata,
Mas o leite é podre,
Passou do ponto,
Azedou... (nata?)
O interesse não é na vaca,
Mas só no sugar-lhe as tetas.
Tu és a vaca!

Pela posição que tens,
E é por mérito,
Assim penso,
Nem questiono, (quem sou?)
Te cercam os falsos
Que só querem teu vinho
Tua suposta influência.

Não és tu de todo inocente.
Procurastes o luxo,
Procurastes a fortuna,
Ostentas por que queres.
Se és vaca,
Dá as tetas e te cala,
Que gosta que a toquem.

No meio desta confusão
Suposta... pretensa,
Incerta e mal servida.
Tu e os teus se regozijam
Na bajulação discreta,
Na casa cheia de quase nada.
Repleta de falsidade de gente atenta.

Mas se a simplicidade é teu lema,
Ostenta tua bandeira.
Nem Don Quixote és,
Menos ainda Sancho.
A pança dos outros é que buscam
Tua mão fechada
Em meio aos teus conflitos de negação.

Abre as portas,
Chegaram os hipócritas
Misturados aos amigos.
Não sabes distinguir, não é?
No mundo da falsidade
Perde-se a capacidade da visão
De um ou dois olhos.

Vá, abra o vinho, hipócrita;
Sirva o queijo,
Dá o beijo
E recebe de volta o ósculo de Judas,
Carente de crenças que és,
Escravo da própria vida que tens.
Belo cabernet, boa safra, parabéns.

Foto:
Capa do CD Atom Heart Mother, do Pink Floyd.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A Criação do Alfabeto...

E assim surgiu o alfabeto:
O A surgiu primeiro e, talvez até por isto, chegou trazendo Amor, mas trouxe também Aflição e Angústia.
O B veio em seguida, encantado pelo amor do A, e assim surgiu a Beleza deste primeiro encontro.
O C chegou trazendo o Coração a bater forte, trouxe o Carinho e enlaçou A e B.
Distante veio o D, imprimiu ali o Desejo implícito, que precisava de se manifestar e se manifestou... Desvairadamente. Duas sombras acompanhavam o D, sombras sinistras, aparentemente antagônicas. Um arrepio atravessou o mundo todo, e o alfabeto também o sentiu. As sombras ficaram a observar e só, ao que parecia, mas havia algo de ameaça, tanto em uma como na outra sombra.
Então veio o E a pôr Encantamento e Entusiasmo nesta vida alfabética.
Finalmente a Fraqueza se fez presente com a chegada do F, trazendo também Franqueza, essencial, se bem utilizada, e com sabedoria, que só chegará mais adiante. A Fraqueza era necessária para harmonizar este mito de amor básico.
O G então chegou prometendo Glória, mas deixou escapar Ganância. Com o D, promoveu a Discussão do "ponto G" feminino, mas as Discordâncias já existiam, com o D. Mantém-se a Discussão. As sombras provocariam várias discussões, mas mantiveram-se quietas, fingindo-se de alheias, embora em nada o fossem.
O H chegou meio atônito, sem saber a que veio. Instituiu o Hiato para por um tempo necessário para que se descobrisse seu uso. Pouco pronunciado, viu que um Helicóptero não voaria sem ele, e viu também que estava no aconcHego, no cHamego e, enfim, se sentiu um Herói. Viu, também, que todo Hoje dependia dele e sem hoje não há presente, não há nada, pois que futuro e passado são só presentes deslocados do agora.
O I trouxe a Idéia do Infinito, ainda que Ínfimo, contrapondo-se ou complementando o Finito que já havia chegado, e todas as outras Idéias. Trouxe também a mim, dando-me o nome de Ivan. Sem o I eu não estaria aqui escrevendo, embora já fosse Bueno desde a gênese desta fábula.
Já o J trouxe o imediatismo do Já, e colaborou com a Angústia que o A trouxera e que foi agravada pelas sombras que acompanharam o D. O J, devo dizer em complemento autobiográfico, que seria genealogicamente bem maior, a tirar dentes de quem pensa, pena ascendência paralela, também me forma, implicitamente, no Jonas que trago nas veias e no coração.
Do K falaremos mais adiante, que aqui ele sofreu meio que uma metamorfose kafkiana. (ando meio fascinado com Kafka!)
O L trouxe Lamúrias e Lamentos, e as sombras se mostraram sadicamente felizes, as sombras do D, mas trouxe também a Lamparina, para iluminar os estados de espírito. Disso as sombras não gostaram, mas é patente que elas não estão neste mundo para resolver ou facilitar as coisas. Ah, e não se pode negar que o L trouxe a Lambida, que tanto prazer dá no Amor.
O M trouxe a Morte e, então, todos compreenderam a Escuridão e a Finitude. Passou-se, como nunca dantes, a se questionar o Infinito e a própria Existência, trazidas antes. O M ficou a se Mover com Inquietude, pedindo ajuda ao C, com sua Compreensão. Mas da Morte nada se compreendeu até hoje. A Morte, soube-se, era companheira das sombras que vieram com o D, meio que as obedecia, era criação e criatura, de existência incontestável, dominante, reinante. Era a rainha das divindades.
N trouxe o Nunca, com pouca convicção, aparentemente. Trouxe o Nada e instaurou, junto com o M da Morte, uma Apatia e um Medo que tomaram conta como Nunca.
A Indignação ficou em alerta e, encantoando o D, perguntou: "E Deus?", ao que o De respondeu: "Como o C, nada Compreendo, nem de Deus, nem do Diabo, nem das Catástrofes, Doenças, Desgraças, Infinitudes e Mortes. Tudo Desconheço!" Estavam desmascaradas aquelas sombras que se omitiam a tudo. Deus e Diabo, que raios! E a Morte, serva de ambos companheiros de rixas, apostas e disputas pelo mundo, o todo e o alfabético. A Morte ficou calada, pois era pau-mandado, e se aconchegou na Escuridão, trazida pelo E, já a um bom tempo.
Daí veio o O e Outras coisas trouxe para mudar o foco negativo. Trouxe o Ovo e a pergunta de quem surgiu primeiro, se o Ovo ou a galinha, esta vinda com o G. Mas o O também se achegou, com intimidade intrometida, à Individualidade e mostrou que há sempre Outros a se levar em consideração e respeitar. A Individualidade teve que se explicar positiva e se dizer antagônica do Individualismo. Era só confusão lingüística.
O P então trouxe o Poder, e este, mal usado, a Podridão e a Pobreza. As sombras vindas com o D adoram o Poder, mas o bom uso é algo que a elas falta fazer. Usam-no por prazer. Poder pelo poder. Do poder surgiram Príncipes e Princesas, e o I não conseguiu conter o Imaginário e a Ilusão, tão Perigosos. O C, então, deixou cair da Caixa que trouxera Contos de fadas e verdadeiros Cúmulos praticados pela Humanidade (sobressaltou-se o H!), tendo o Poder como base. O P, vendo aquilo, exclamou: "Puta que os pariu!", e ficou mesmo Puto, pois era letra de pudor.
"Que é isto?", exclamou o Q já de chegada, e se estranhou com o O, como quem via a si mesmo, faltando o rabinho... E ao pensar em rabinho voltaram todos a pensar em Deus e no Diabo, aquelas sombras poderosas e reluzentes onde a luz havia e se extinguia. Não era possível compreendê-las, ou é o mesmo que é impossível compreender a Deus e o Diabo. Eles, ambos, pouco preocupados estão em serem entendidos. Basta-lhes o poder de poder o que quiserem, ainda que sadicamente. De novo se ouviu: "Que isso?! Jesus nos salve deste verdadeiro Quartel!", mas Jesus, pobre dele, morrera a mando de Deus e em tentações demoníacas. Disse-se que salvador, mas sua vida foi mesmo trágica e não se sabe, se bem se observa, o que ele salvou.
Chegou o R e se aproximou tentando impor Respeito, mas ele trouxera também a Raiva, que se contrapôs à Calma, que ali, há tempos, já tentava se fazer ouvir.
O R percebeu, então, que fosse como fosse haveria por ali e por toda parte alguma Revolução e Revolta. Divindades em glória.
Eis que surge o S, todo elegantemente encurvado, e bradou: "Eu trouxe a Solução!", mas a frase é Sintomática de Soberba. Na verdade pouca solução há para o Caos, que tão cedo já havia chegado. A Criação, de C como Caos, já veio com Caos, embora carregue a propaganda enganosa de por ordem no universo, ainda não citado. "Sejamos Sinceros", disse o S, e nisto foi feliz, mas a Incapacidade já rondava alguns. E ainda certo de seu Saber, o S disse: "Eu trouxe, pois, a Sabedoria. Saibam utilizá-la e tudo terá boa Solução." Mas a um pequeno descuido lhe salta da sacola uma bela e tentadora Serpente. Na escuridão da sombra das sombras das divindades percebeu-se risos irônicos, sádicos e cheios de prazer por aquele poder. A Serpente era, em certo contexto, pau-mandado a destruir com o Paraíso que Deus disse um dia ter existido e Adão e Eva já eram seres errantes, pois criados à imperfeição do Pai, e sofredores, como toda a humanidade subseqüente. O H encheu-se de si ao ver todos em estado de Hipnose, pela serpente, e também pela citação da Humanidade. Até ele próprio se Hipnotizou. O S sentou-se, cheio de Saúde, mas algumas vozes lhe perguntaram: "O que sabes de Satanás?", mas ele fez uso do Silêncio, e com Sabedoria, devemos admitir. Não se diz o que se sabe de Satanás, o tal Diabo, nem tampouco de Deus.
O T, ali chegando, disse que: "Por fim, aqui se terá Tudo!", e vários se sentiram alegres, mas poucos foram os que se deram conta de que o Tudo não era o Bom, como advertiu o B. O M, ainda ressabiado pela foice que com a Morte trouxera, nada disse sobre o Mal. Estava em Tudo, implícito, o sabia. A Serpente acabaria, como já o indicamos, ainda que inocentemente, sendo Acusada pelo A... e pelo Deus que o D dizia conhecer, mas era por temor. Era temente, como vários viriam a se tornar. E é mesmo de temer e ser temente, pois é perigo que carregam as divindades, sejam quais forem, sejam politeístas ou monoteístas, dá tudo no mesmo.
O U achou que era o Último, e todos se riram dele, a começar pelo R. Viu que trazia Ungüentos e os distribuiu com a melhor das Intenções, deixando o I e tantos outros satisfeitos. Não conseguiu, no entanto, se aproximar da Morte. Ali, onde ela atuava, parecia que os Ungüentos de nada serviam. A Dor é que era amiga íntima daquela que carregava a foice e era arredia a todos, embora fosse estranhamente íntima de todos. Embora não corresse atrás, todos se sabiam ameaçados por ela.
Chegou o V e disse ter trazido a Vida, mas a Morte, quieta em seu canto, sorriu maliciosa e cinicamente como quem pensa, sem precisar dizer, "Com isto eu acabo fácil!". E o V, ainda eufórico, disse: "Eu trouxe a Vitória!", mas dito isto deparou-se com o D a lhe esfregar nas fuças a Derrota, para encantamento e desbunde das sombras das divindades reinantes, sempre reinantes. O D era arrogante, às vezes, e talvez por acobertar Deus e o Diabo. V e D, enquanto simples letras, neste momento, calaram-se em contraponto de Vitória e Derrota. Eram conceitos relativos, afinal. Faltou-lhes Argumentação, que o A deixou guardada pra si, mas não por maldade, coisa do M, mas por não saber abordá-la. O S ainda percebeu o angustiante Silêncio que se fez e percebeu o movimento sinuoso da Serpente, mais uma vez. Aquele Silêncio mostrou ao S, e a quantos prestaram atenção àquilo, o quanto é ele, o Silêncio, angustiante. Vitória e Derrota, dominadas por Silêncio de Morte! Ali ainda ficariam e ficarão por uma Eternidade, se esta se fizer valer.
O W chegou sem estardalhaço, sem sentido, como que um simples M de ponta cabeça, e nada mostrou aos demais.
Xingamentos foram proferidos, rompendo o Silêncio da Morte, e todos se viraram para ver o desbocado X, que chegava com Xícaras de chá para acalmar os ânimos. "São chás de 'hervas', vajam!", disse o H, prontamente corrigido pelo G da Gramática e pelo O da Ortografia, ainda um tanto contrariada pelas ridículas modificações que, no Português, sem nenhuma necessidade, lhe impuseram.
Chega o Y e se junta ao K e ao W, que ali ainda não se sentiam confortáveis e nem realmente úteis. Eram como estranhos, "Yes!".
Aparece, por fim, o Z, satisfeito com aquela Zorra que ele, sem que o soubessem, já tinha ali plantado antes mesmo da chegada do A. Zombou de todos, com o consentimento das sombrias divindades, Deus e Diabo, e deliciou-se. Deu uma piscadela para a Morte, pois, por ser a última letra, era como se fossem uma coisa só: Fim, Morte, tudo igual. Fim, aliás, que o F omitira por Medo da Morte. "Armagedom, Apocalipse!", gritou o A em desespero, sem ter se apercebido daquelas coisas de A. Mas assim era desde A criação.
E formou-se, assim, o alfabeto confuso e entrelaçado, como é o próprio mundo. Viram as letras, com um pouco de Atenção, já vinda com o A, e tantos outros predicados, que eram interdependentes entre si. Mas isto não significou o triunfo da Paz ou da Sabedoria. Como bem disse o C: "Isto é só um Conhecimento, e nada mais." Conhecimento que vitimou a humanidade, quando tomou ciência do bem e do mal (pobre Serpente!).
E era da vida que se falava ao falar o alfabeto, ainda que não o saibam suas 26 letras. São meros instrumentos. Deus e o Diabo é que cravavam, com a Morte, os destinos de todos. "Isto para os que Crêem!", gritou lá de longe o C e deixou um eco para as cabeças pensantes.

Escrito em:
20/09/2009 (03:45h) e modificado na pré-postagem

A Cadeira Mira o Mar...

A cadeira observa o mar,
estática
E estático estava eu
ao mirar o mar, o céu,
nem estava lá,
estando invisível
Minha figura desapareceu
diante da grandeza de tudo...
Minha pequenez deixou o mar
e a cadeira em paz
Na minha paz,
na minha absorção da cena,
da cadeira,
quase na cadeira
E a paisagem plena se impõe
E a cadeira salienta
a absorção do mar,
a observação do mar
Enquanto as ondas vêm
e vão, sem parar...
Vou observando,
vou vivendo,
vou olhando.

Foto: Fabiana Sebba Fleury

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aborda-me de gorros...

Aborda-me
Pela borda do que sou
Sem se aprofundar
Daí, de repente, dá um pití subjetivo
Se é que algum não seja
E se sente no direito de agredir
É arrogância pura
É prepotência crua
É humano, no entanto
Vestir carapuças alheias como próprias
Dá, já deu, origem ao ditado popular
E a carapuça serviu
Vestiu-a? Coube?
Sinto, mas não era para ti
Se gostas da aparência
Mantêm-na na cabeça
E admira-a a cada olhar lançado ao espelho
Neste mundo narcisístico
E se me aborda
Aborda-me, sim
Não pela borda, mas pela alma
Que é lá que se me toca
Pois não sou prato de sopa
Nem fabrico gorros

domingo, 17 de janeiro de 2010

A deus... adeus

Eu, agnóstico, mas não ateu, e menos ainda religioso, li agora a pouco no blog Abraça Tua Loucura uma bela postagem que trata do luto e de questões que estão pairando sempre nos pontos de interrogação que me cercam e quase que me carregam pela vida. Uma frase me chamou a atenção, dentre tantas bem interessantes, que foi:
"Certas coisas se juntam de uma maneira tão inexplicável que eu chamo isto de Deus"...
O "eu" da frase não sou eu, o que agora escrevo, mas me chamou a atenção, por agnóstico que sou, buscando definições, questionador incorrigível, sempre em busca, nem sempre (ou raramente) encontrando as respostas que quero, as respostas das quais preciso. E acho que é isso: deus é uma definição, ou melhor, são várias definições. O "deus único" não é único, ainda que para aqueles que assim o professam. Peça-lhes uma definição, e se foram mil, terás mil definições ou mais.

Afinal, precisamos mais de respostas ou de perguntas que nos aticem? Ou de ambas, pois sozinhas seriam como almas perdidas num purgatório eterno? A filosofia, não se deve esquecer, seguiu, e segue, mais a linha de questionar do que a de responder. Talvez seja assim que se cresça ou ao menos se queira crescer. Mas acho que a gente cresce, sim, amadurece, sim, bem como envelhece, a menos que a vida ou o destino ou mesmo deus, como cada um preferir chamar, interrompa este trajeto de forma abrupta (e injusta, pois sempre me parece injusta).

Sobre a dor, a perda, não há palavra a ser dita. Às vezes o silêncio de um abraço, a compreensão de um olhar, o simples respeito pela dor são o que há de mais importante. Saber-se não sozinho, saber-se amparado, ainda que este amparo não seja de nenhum "herói" (eles não existem!), é fundamental, vital, visceral e, por que não?, tribal. Vem das nossas origens mais remotas, das tribos que nos deram origem. Tudo isto: a dor, a busca da compreensão, os questionamentos, as respostas possíveis (alienadas ou de bom senso). Somos tribais, somos animais em evolução, em revolução, em ebulição. É preciso, às vezes, gritar NÃO! Sim, é.

Vida é despedida. Não só, mas também ou principalmente. Dos outros e de nós. E queriramos ou não, é preciso aprender a dar adeus, dar a deus... Que é isso? Dar a deus... Que é isso? Que é? Deus, que é isso? Que é isso, deus... deus... ah, deus... adeus...

Já uma neblina paira sobre a cabeça
E a cabeça paira imersa em pensamentos
Já os pensamentos se mesclam com a neblina
E me torno neblina e fog

Já o trago traz a tosse e o chiado
E o chiado traz a asma e o diabo
Já o diabo traz deus a seu encalço
E deus traz o diabo criado e tanta descrença

Já a luz traz o olho apertado
E o olho apertado traz o rosto franzido, magoado
Já o franzido traz a ruga inerente
E a ruga traz o botox, a xerox, o photoshop

Já o menino traz em si o adulto
E o adulto traz o menino em si, sempre
Já o sempre traz em si uma ilusão
E a ilusão carrega, sem saber, qualcosa di vero

Já as letras carregam juntas as palavras
E as palavras carregam algum sentido, às vezes
Já o sentido contém uma reserva só
E a reserva perde o pudor e cai na vida, a toa

Já a puta grita de falso prazer, que é pago
E o pagamento emputece quando é pouco, ela grita
Já o pouco é mesmo conceito relativo e parco
E por parco é aqui que mesmo termino

Já neblina
E cabeça
Já pensamento
E acabou, de fato

sábado, 16 de janeiro de 2010

Memórias e pensamentos aleatórios

Não estou feliz, a jogar confetes pro alto e gritar de alegria, claro que não. Ninguém fica feliz ao término de uma relação, ainda que catastrófica. Esta nem catastrófica era, muito ao contrário, aliás. Estou triste, sim, de tristeza natural, como era de se esperar, mas estou inteiro e vestido pra batalha, pronto pra seguir adiante, e seguindo. Guardo as boas lembranças a guardar nos bolsos da memória, das ruins, tiro as lições de que sou capaz e nada mais. Ganhei e perdi, ganhamos e perdemos. É sempre assim, não? Mas mais ganhamos que perdemos, ainda que haja o incômodo do término e suas consequências maiores ou menores, umas um tanto particulares, peculiares, únicas, outras um tanto comuns com todo término de relação.
A todo término, o mais patente é a cara de espanto das pessoas próximas ou conhecidas, como se fossem elas a fazer mais planos que nós, os "desnubendes" (criei a palavra!). Não, acho que não é só isso. Há uma perplexidade sobre a qual conversava sábado passado com uma amiga, cujo nome aqui omito, exatamente a uma semana durante o almoço. Ela passou por separação muito maior e causou muito mais espanto, esse estranho espanto de quem imagina que as coisas não podem ser boas e ainda assim finitas. As pessoas não conseguem suportar a coragem de quem rompeu uma relação, ainda que abrindo mão de coisas boas. Parece pretensão dizer assim, mas não me ocorre diferente. Sacrifício tem limite! Sofrimento é que pode se eternizar, mas se é possível uma linha tênue de escape, escape.
Olhos atônitos falam, ou é como se falassem, como foi possível essa coragem de largar "tudo" para trás? Como se "tudo" fosse realmente tudo. E quantos se prendem na mesquinhês de relacionamentos pobres, podres, enferrujados, catatônicos, mornos (ou frios) e onde, às vezes, até o respeito ameaça pedir licença, sem a coragem de tentar nova vida, de seguir adiante, de, especialmente por respeito mútuo, seguir mesmo adiante por caminhos diferentes, ainda que paralelos ou próximos, dependendo do quanto precise ser?
Como pôde? Ela tão linda, ele tão pra ela! Casal lindo! Como pôde?
O espando é, às vezes, reflexo da incapacidade de se ver rompendo barreiras, de não saber se libertar de amarras (e é difícil mesmo) e de não saber carregar a bagagem do que se construiu com o tempo, seja que tempo for.
Agora tomando o gancho da conversa de sábado passado... E agora já está noutra relação e com uma diferença de idade tão grande! Será que não se enxerga? Isto ocorre com alguns, não é meu caso, mas poderia ser... ou poderá, tanto faz. Diferença de idade, de beleza, de classe, de credo, é tudo limite separador. Pode ser? Pode. Pode não ser? Também pode. Concluo na conclusão, como é de boa praxe.
É escolha, é direito. Escolha o que te apetece, e a gente nunca sabe o que nos apetece. Já falei disso nas "subjetividades do nariz".
Acho que as pessoas se esquecem de que sabem (ou deveriam saber) que uma relacão não é feita da convivência das idades; um relacionamento é feito da convivência das almas. São almas que se encontram, não regras, idades, classes, posições, nada disso. Tem quem se prenda a tudo isso, mas daí nunca encontrarão almas. Daí regras, estereótipos, tentativas de jogos de sedução estudados de nada servem. Se as almas não se entrelaçam, pouco importa todo o resto, quando o intúito é amar. Se o intúito não é amar, mas construir uma casca, uma "capa social", aí é mais fácil. Mas amar, ah, amar é coisa de almas, e de almas com coragem pra enfrentar eventuais manifestações contrárias.
Coragem!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Troca de quartos

Ela passou pela porta se achando gostosa, me lançou um olhar natural, um sorriso brejeiro e subiu. O olhar me desafiou! Pensão de interior, silêncio reinante, minha porta entreaberta não conseguiu me conter. Ela se sentiu gostosa, e parecia mesmo. Fui conferir. Subi as escadas que levavam para o pavimento superior e não sabia qual era o quarto. Portas fechadas, silêncio, escuridão. Estive a ponto de voltar ao meu quarto, frustrado pela provocação gratuita, mas tive a idéia autômata de tossir. A um tossido, nada. Ao segundo tossido, um rangido de dobradiças mal lubrificadas se fez ouvir. Me aproximei cuidadoso e em dúvida, mas havia, agora, uma porta entreaberta e uma luz fraca. Deitada e tomando uma lata de cerveja ela me olhou e me ofereceu um gole. O dia tinha sido de andar e fotografar a cidade, eu, ela e mais um monte de gente. Palavras e impressões trocadas, uma clara demonstração de afinidades. Outra latinha? Que nada, dividimos a mesma e depois é que passamos para outra. Mais troca de figurinhas e a sedução foi como eu gosto: natural, sem jogos, sem personagens criados ou mascarados. A cerveja acabou, mas no meu quarto tinha mais, então foi o caminho natural. Adicionados tira-gostos, mais cerveja, comentários sobre fotos, filmes, músicas e, enfim, não foi preciso comentar mais nada. O silêncio do corredor de cima, quando cheguei, também desceu, fez ranger as dobradiças da minha porta e entrou no quarto fazendo trio com o par. Em silêncio nos olhamos, em silêncio nos tocamos, em silêncio nos beijamos e no mesmo silêncio nos fizemos conhecer. O banho já era uma bagunça de antigos recém conhecidos, cheio de brincadeiras e intimidades que surgem naturalmente. Nem eu me lavei, nem ela se lavou: nós nos lavamos, de corpo e alma. Dormimos na mesma cama, a conversa ainda foi até tarde. Na manhã, café sortido e farto, olhares curiosos querendo perguntar que troca de quartos havia sido aquela, mas alí, sabe-se lá quantas outras trocas houve. Comemos, todos comemos, ao que deu a entender. A continuação fica a cargo das reticências, sempre tão amiga das histórias inacabadas...

Meu poço

Tornei-me você
E me perdi
Na busca de mim mesmo
Ao ficar só
E desde tão cedo
Por opção
E por falta de opção

A mente está turva
Como a água do poço
Onde caí e me atolei
E me calei em gritos
E de olhos úmidos
Deixei de chorar
Ainda que em prantos

Procuro encantos
Procuro encontros
Comigo, em especial,
A descobrir o mapa
Dos tesouros
Das trilhas
Que é só caminhar

Poço que caí
Poço que escavei
Poço que não posso
Poço que senti
Poço que me pode
Que me devora
E me revigora

Intersecções Necessárias

É como se ela vivesse num mundo particular, um universo à parte. Todos os mundos são particulares, todos os universos, idem, mas este, dela, era mais particular, porque alheiava as informações que lhe chegavam, ou melhor, lhe poderiam chegar. A diferença é que há, via de regra, uma área de intersecção mais ampla entre os mundos do que aquele, dela, só dela e sem escolha. Não era uma opção, era uma imposição: o mundo com poucas e restritas intersecções. Imerso neste mundo, meu mundo se tornou com menos intersecções, menos interativo.

O mundo dela era como que belo, ela era mesmo (é) bela, cativante, magnética, mas a falta de intersecções aliena, de certa forma, alheia-nos do entorno, dos outros conjuntos, dos outros mundos e universos paralelos aos nossos.

Uma ilha foi se formando, ilha de fantasia, mil fantasias, fantasias mil, mas ilha é uma idéia romântica, encantadora, desejada, caçada até certo ponto. Ilha como porto temporário, é delícia, é manjar. Ilha como parada definitiva, é sufocante, mesmo não sendo escolha, mesmo o barco tendo se aportado alí, ou naufragado, sem escolha, sem escola, e daí é preciso aprender um novo universo, e quase que único universo, sem, ou quase sem, intersecções.

O mundo dos conjuntos (e permitam-me a metáfora das primeiras lições de matemática que todos aprendemos, mas que poucos entendem que ela ensina tanto pra vida) é assim: quanto mais intersecções, mais rico. Um conjunto sem intersecções ou com poucas delas, é, poderia-se dizer, puro, quase que imaculado, mas nele não entram novas informações, novas idéias, novos convívios. Roubando um pouco da genética, um conjunto com poucas intersecções nos faz pensar nas "raças" puras. E não são estas as que mais facilmente adoecem?

As intersecções são o que enriquece a vida, o que provoca, lateja a alma, inquieta a calma ou acalma a inquietude. Mas ela está viva e vive sem muitas intersecções. O que é ela? Pode ser o que, pode ser quem, pode ser um instante ou situação ou, pra quem conhece bem a história, ditus est... e tudo.

As intersecções (ou interseções, caso prefiram) nos enlaçam, nos envolvem, nos cativam. E nesta história de intersecção apenas dois conjuntos estavam a trocar conteúdo, e ainda assim de forma restrita. Mas nada podia ser feito pra salvar, se é que o termo se aplica.

A falta de intersecções mais amplas me sufocou e saí deste conjunto, ainda que com dor. Faltou em meu conjunto elementos suficientes para suportar a falta de intersecções.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Subjetividades do Nariz... (ou da lingua?)

- Não gosto do gosto da tua lingua.
- Que isso?! Por que?
- Não sei, não gosto, e nem dos movimentos.
- Como assim?
- São desordenados, desconexos. Parece-me uma lingua em ataque epiléptico.
- Que absurdo! Por que sais comigo?
- Algo me agrada.
- Não o beijo?
- Não, nem o gosto da lingua.
- Do que gostas?
- Teu cabelo, teus seios, tua pele, os pelinhos dourados, a inteligência...
- Não gosto de jiló!
- O que tem a ver?
- Disseste que não gostas do gosto da minha lingua... É como jiló?
- Não, é gosto único, teu.
- Tão ruim?
- Não!
- Quero-te!
- Talvez te queira, mas ainda não sei.
- Depende da lingua mudar de gosto?
- Não, lingua não muda de gosto. O que muda, às vezes, com costume, é o paladar. Por hora está tudo com o gosto estranho.

Complicações

Meu coração ainda tremula diferente
quando te ouve...
Não, não chore, por favor,
assim você acaba comigo.

Eu, que fui incapaz de compartilhar a sua dor,
embora tenha querido tanto.

Sua voz ainda é música para os meus ouvidos.
Mas não sei como a minha soa nos seus...
e eles te fazem chorar.

Dói em mim a impotência,
dói em mim a sua dor
e a confluência dessas duas situações.

Seu cheiro é o que ainda carrego,
ainda que secretamente,
e é sua pele que quero sentir tocando a minha.

Queria ser mais tolerante à repetição,
à rendição,
à condição de abdicar
de coisas que me são caras,
mas você também me é cara,
muito cara.

De olhos fechados vejo seu sorriso
e se não me controlo
avanço no vento vazio
em busca do beijo,
do toque,
do calor do corpo,
dos seus quadris,
dos seus seios,
de você.

Eu queria ser outro,
sendo eu mesmo,
e queria você mesma,
sendo outra.
A questão é o que não sou!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Portas Abertas

Eu me nego a fechar as portas
Ainda que esteja entrando poeira ou água
Ainda que eu esteja pensando besteira
Pois se fecho as portas com medo do ruim
Também as fecho para o que é bom
E quero portas abertas para os amigos
Para o bom trabalho
Para o bom amor e o bem amar
Quero portas abertas para a brisa que acaricia
E para os teus seios que chegam primeiro
Nesse teu caminhar
Eu quero portas abertas como no interior
Sem medo do homem que passa
Ou da velha do outro lado da rua
Ou da criança que possa quebrar o vaso
E destruir o arranjo
Quero portas abertas para o coração
E para a alma e para o espírito
Seja lá o que tudo isto signifique ou seja
Eu me nego a fechar as portas

Subjetividades do Nariz

Tem que haver um gosto, tem que haver
E esse gosto não dá pra explicar
Assim como não se explica o cheiro
E não se explica o tato
Nem o jeito de andar, nem o de deitar
O gostar é subjetivo
Nem sempre intuitivo, nem sempre lógico
Nossos instintos e subjetividades dominam
Nos guiam por onde acham dever
E vamos, nos pensando donos do nariz
Mas é o nariz que é nosso dono
E é no nariz que se concentram essas coisas
Essas subjetividades inexplicáveis
Esses tatos impalpáveis
Esses beijos estranhos ou bons
Esses desencontros tamanhos
Encontros mágicos
E tantos pensamentos um tanto tacanhos.

Às vezes tem osso...

Meu sobrinho devia ter uns 3 ou 4 anos de idade e já estava na escola, "estudando". Meu cunhado foi buscá-lo no fim do dia, colocou-o no banco de trás e ia pra casa. Meu sobrinho estava estranhamante calado e pensativo. Ele era um tagarelazinho extremamente inteligente, mas naquele dia estava pensativo. Meu cunhado olhava pelo retrovisor, enquanto dirigia pela Marginal, e via só aquela carinha de pensativo. Foi um bom trecho até que meu sobrinho, ainda com ar reflexivo e sério, rompeu o silêncio e disse:
- Sabe, pai? Meu "piu" às vezes tem osso, às vezes não tem osso!
Meu cunhado, claro, praticamente (ou literalmente, não sei) teve que encostar o carro para rir, mas rir muito. O pior é que a reflexão do meu sobrinho era séria, e ele detestava que ríssemos de alguma coisa que ele dissesse. Mas as crianças, nessa descoberta do mundo, dizem coisas divertidíssimas. Essa entrou pra história.

Atualmente ele tem 18 anos e já sabe bem administrar esse osso-não-osso. A história é motivo de risos até hoje, 14 anos depois, e ainda será por muito tempo.

Aquela carinha pensativa não só pensava como investigava de forma tátil a ocorrência surpreendente de um osso que ora aparecia, ora desaparecia. A gente aprende mais com as crianças do que ensina. É ilusão achar que é o contrário.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Luto de Passarinho

Ano é igual a passarinho, sempre voa,
Dizer "este ano voou", é redundância.
E neste vôo rápido percebo
Que ainda carrego meu traje de luto
E que não é só ornamento.
Estou de terno preto
E imerso em pranto
Sem deixar, que bom!, de ver horizontes.
E o passarinho-ano voou
Em acrobacias que foram lindas,
Verdadeiras delícias a degustar,
Mas tive de abrir mão, deixar as delícias.
Vesti-me de luto, e luto é traje especial
Que não sai quando se quer tirar,
Tem vontade própria:
Traje de luto sai quando se desfaz o tecido,
É preciso esperar que se desfaça
A trama que o forma,
Os sentimentos que o atam,
Laços fortes,
Lembranças belas,
Decisões difíceis,
Bem precioso demais pra substituir.
Leva-se tempo,
O tempo é que leva.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Cão Raivoso

A vida é um cão raivoso,
Babando com os dentes à mostra.

Este cão me encanta,
Me ameaça,
Me devora
Pedaço por pedaço,
A cada dia "invivido".

O passado carrega dor e o pouco de magia que houve.
O presente é a ameaça, o grito de pavor,
É a falta de rumo, de vontade,
É a ausência de criatividade, de rumo.

O futuro me mostra sombras, solidão e abandono.
O futuro, mais que o presente, é a ameaça concretizada:

Um futuro sem futuro,
Como o presente é sem presente
E o passado teria de ser refeito quase por completo.

E o cão me devora pedaço a pedaço
Com sua baba contaminada de raiva... e ódio.

E o cão me fita fixamente e me encanta
Com seu olhar onde a raiva parece ter cedido lugar à esperança.

A raiva está em mim!

Escrito em:
22/09/2009 (14:25h)

Agora Eu Era o Herói

Ela andava à minha frente em meio à multidão, interrompeu brevemente o passo, olhou para trás, fixou seus olhos nos meus de forma desconcertante e voltou a andar como quem não anda só, como quem me convidara para o encontro. Caminhei, pois, se não ao encontro, ao encalço... E olhávamos vitrines, roupas e perfumes num delicioso jogo de sedução. A aproximação deu-se naturalmente, aos poucos. O coração acelerou-se, as mãos esfriaram, o rosto deve ter ficado vermelho, mas ali, diante da loja de perfures, nos olhamos e, adultos, nos cumprimentamos como dois adolescentes enrubescidos e sorridentes.
Qual seu perfume predileto?, perguntei, e a conversa evoluiu tão rapidamente que voou. Tim tim, e já nos havíamos proposto um vinho, um brinde a nós, já devidamente nomeados, já devidamente introduzidos aos respectivos mundos: mini-currículos, listas de músicas prediletas, estilos, livros e filmes favoritos e o recitar de um verso de "João e Maria" saiu como consequência do meu cavalo que falava inglês. Saiu natural como enfrentar os batalhões, os alemães e seus canhões... e falávamos de rock e de Chico e de Tom. As mãos já se tocavam, as taças já não tinham dono e as bocas se fundiam e se confundiam num beijo quente. O resto, então, era só consequência inevitável do querer, de afinidades, do estar livre e querer amar. Onde estamos nós?

Escrito em:
01/12/2009 (23:47h)

Presença Incógnita

Em tua presença o silêncio fala
A eloquência cala
E o sobressalto se senta com tranquilidade
A conversa flui
O pensamento intui
Saber o que o sentimento quer

Em tua presença o tempo pede licença
E o relógio para
Os giros do mundo são poesia
E a vontade de morrer é hipocrisia
A vida flui
Na direção em que o desejo ordena

Em tua presença a vida não é sentença
O silêncio acalma
E o temor toma a forma da sabedoria
O desejo aflora
A alma transborda
E a carne goza de prazer

Escrito à 01:40h

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Começou

E começou, começou há pouco...
Mas alguma coisa nova de fato começa?
Fogos estourando, taças tilintando cheias de champagnes ou vinhos espumantes,
Ceias maravilhosas, música e amigos reunidos.
Ano novo... Vida nova?
Pode ser, mas não depende de todo o circo, que é bom e divertido,
Mas a gente ri no circo e fora dele... Chora, também!
E os palhaços também têm um misto de alegria e bizarrice na face e nos atos.
Nós somos os palhaços,
Nós somos os bichos enjaulados,
Nós somos os equilibristas na corda banda,
Giramos no globo da morte, pois um dia ela chega, mesmo. Não adianta!
Somos também domadores,
Atrações e espectadores, felizes ou atônitos,
Às vezes mais atônitos.
A vida toda é um circo, que tem sua diversão, mas também seu desconforto.
Nós somos todos mesclas de coisas, e nunca uma coisa só.
Não há só o bem, não há só o mal, especialmente separados:
São co-dependentes, complementos, talvez, de intrínsecos mistérios.
Um não existe sem o outro, penso eu,
Mas penso bem ou penso mal? E quem me julgará?
Para que a luz faça sentido, é preciso haver trevas a iluminar, sempre.
Para que exista um milagre, é preciso alguma dor, alguma coisa torta.
Que venha, e já veio, 2010...
Que venham muitos outros, muitos mais, sempre com saúde e paz.
Um bom ano novo para mim e para todos os amigos.
Não custa e nem fere desejar!